O fim da “geringonça” e o novo Governo

Constituiria da minha parte um acto de má-fé não reconhecer que esta solução política se revelou bastante mais consistente e razoável do que aquilo que eu tinha previsto

“A democracia não é possível senão quando há um ethos democrático: responsabilidade, pudor, franqueza (parrésia), controlo recíproco e uma consciência aguda de que as questões públicas são também questões que nos interpelam pessoal e individualmente"

Cornelius Castoriadis

1. Há quatro anos atrás opus-me com veemência à celebração de um entendimento parlamentar com incidência governativa entre o PS e os partidos situados à sua esquerda, acordo esse que viria a entrar na gíria popular sob a designação de “geringonça”. Fi-lo na convicção de estarmos então perante um expediente moralmente atacável e politicamente questionável destinado, tão somente, a permitir ao PS a formação de Governo após uma relativamente inesperada derrota eleitoral. Por ter tomado tal posição fui objecto de uma operação de execração pública minuciosamente levada a cabo nas redes sociais e de uma campanha de ostracização partidária que se traduziu no facto de não ter sido convidado para uma única iniciativa promovida pelo PS nos últimos quatro anos, mau grado desempenhar funções de deputado no Parlamento Europeu. Aquilo que constituía uma divergência legítima, afirmada com frontalidade e franqueza, foi tratada como uma verdadeira dissidência política e ideológica. Confrontei-me com tudo o que há de pior na vida partidária: o dogmatismo dos alarves, o sectarismo dos fanáticos, o cinismo dos oportunistas. Compreendi bem cedo que não havia lugar para quem questionasse a famigerada “geringonça”. Não foi razão suficiente para desistir. Nunca escondi o meu ponto de vista. Quando as tentativas de silenciamento foram longe demais contei com a solidariedade de verdadeiros espíritos livres do PS, como Manuel Alegre, João Cravinho e Vera Jardim. Tomei nota de inesperados silêncios. Tudo isso passou. Quatro anos volvidos - e um novo acto eleitoral decorrido - a “geringonça” sucumbiu.

Constituiria da minha parte um acto de má-fé não reconhecer que esta solução política se revelou bastante mais consistente e razoável do que aquilo que eu tinha previsto. Para isso contribuíram, a meu ver, três coisas: a prevalência de um contexto económico-financeiro europeu favorável, a firmeza exibida pelo primeiro-ministro na condução da política orçamental e no respeito pelos compromissos europeus e um muito apreciável sentido de responsabilidade política manifestado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. Apesar disto continuo a questionar a solução, quer pela forma como surgiu, quer pelo carácter anestesiante, e até paralisante, que lhe é consubstancial. Nestes quatro anos o país viveu num estado de relativa suspensão da realidade. Ora isso tem um preço, destinado a ser pago mais cedo ou mais tarde. Por isso mesmo sempre preconizei que o PS, após uma expectável vitória eleitoral nas eleições legislativas, deveria optar por uma outra solução política baseada na disponibilidade para negociar apoios parlamentares à sua esquerda e à sua direita. Esperemos que tal venha a suceder.

Há, porém, algumas ilações a retirar de todo este processo. Contrariamente ao que a dado passo se tentou fazer crer, a “geringonça” nunca correspondeu a um propósito devidamente pensado e amadurecido de superação de uma histórica inimizade parlamentar e ideológica entre os vários segmentos da esquerda portuguesa. Foi apenas e só um expediente usado para afastar o centro-direita do poder e garantir a constituição de um Governo do PS liderado por António Costa. Constatou-se, assim, o carácter muito precário desta solução vocacionada para uma durabilidade limitada e muito dependente da benevolência de circunstancialismos externos à mesma. Por último, a forma como findou pode originar desconfianças futuras entre as partes.

Como já seria de esperar nada disto gera o devido debate no seio do Partido Socialista. Os mesmos que endeusavam a “geringonça” invectivam agora o Bloco de Esquerda e enaltecem a nova opção tomada. O espírito de rebanho em todo o seu esplendor. Infelizmente, o PS está, em grande parte, adormecido e encantado pelo exercício, quantas vezes ilusório, do poder. Dizer isto vai valer-me mais uma leva de insultos da horda habitual, mas paciência. O meu compromisso é com o ethos democrático e com nada mais.

2. O país ficou a conhecer esta semana o novo Governo. É certo que ainda faltam os secretários de Estado mas já se sabe quem vão ser os titulares das pastas ministeriais. Há uma surpresa muito boa, uma indigitação altamente reprovável e uma orientação geral pouco entusiasmante.

A surpresa positiva é Ricardo Serrão Santos no Ministério do Mar. Trata-se de um cientista de reputação mundial que exerceu com excepcional brilho as funções de deputado europeu nos últimos cinco anos. Era impossível fazer melhor escolha.

A promoção de Pedro Siza Vieira ao estatuto de segunda figura da hierarquia governamental é, a meu ver, amplamente censurável. Não questiono nem a inteligência, nem a integridade moral do novo número dois do Executivo. O que contesto é o sinal de despolitização que essa escolha representa. Siza Vieira é um bem sucedido advogado de negócios a quem não se conhece qualquer linha de orientação doutrinária ou política. É claro que num país ainda dominado por uma bolorenta cultura anti-política haverá quem saúde tal tipo de escolha, a começar pelos empresários de sempre, eternamente dependentes dos favores do Estado. É uma má solução, particularmente incompreensível num Governo de esquerda. A democracia convive sempre mal com a opacidade.

O resto é mais do mesmo, o que indicia que este executivo em concreto foi pensado para durar mais ou menos dois anos. Pedro Nuno Santos amplia e reforça os seus poderes, no que parece constituir um reconhecimento de uma capacidade executiva que se tem vindo a consolidar. Augusto Santos Silva permanece como o político mais denso de todo o executivo. Por fim, reitero aqui o que já afirmei ao longo da semana: este Governo é mais de António Costa do que do PS. Por isso mesmo, é maioritariamente constituído por personalidades desprovidas de autonomia política e pouco propensas a qualquer gesto ou pensamento indiciadores de uma vontade própria. O Conselho de Ministros não parece ser muito mais do que uma câmara de eco da voz do chefe.

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