Tribunais, política e identidade de género

Qualquer que seja a decisão, uma coisa é certa: nos EUA, teremos mais um caso em que involuntariamente os tribunais serão protagonistas de uma campanha eleitoral.

Está pendente no Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América o processo R.G. & G.R. Harris Funeral Homes, Inc. V. Equal Employment Opportunity Commission, et al., um dos casos que certamente mais discussão gerarão no futuro próximo e cujos ecos certamente chegarão à Europa.

Na decisão a proferir, Supremo Tribunal será chamado a responder à seguinte questão: o título VII do Civil Rights Act de 1964 proíbe a discriminação de pessoas transgénero com base em: (1) a sua condição de transgénero e (2) estereótipos sexuais, de acordo com a sentença Price Waterhouse v. Hopkins (1989)?

William Stephens foi contratado em 2007 como aprendiz pela agência funerária Harris Homes. Bom trabalhador, chegou ao posto de diretor de funeral, respeitando sempre o dress code imposto pela sua empregadora, justificado com “a necessidade de não ser um motivo de distração para as famílias em luto e ajudá-las no seu processo de superação da dor”: fato e gravata para os homens, saia e casaco para as mulheres.

Em 2013, Stephens enviou uma carta à administração da empresa dizendo que toda a vida lutou contra um distúrbio de identidade de género e que tinha tomado a decisão de tornar-se “na pessoa que na sua mente já é”. Informou a empresa nessa carta que, depois de umas férias já agendadas, regressaria à empresa com o nome de Aimee Stephens e passaria a envergar a roupa exigida pela empresa para os seus funcionários do sexo feminino: saia e casaco.

Algumas semanas depois, ainda antes das férias de Stephens, o gerente da empresa despediu‑o, dizendo simplesmente que “aquilo não iria funcionar”. Foi oferecida a Stephens uma indemnização e algumas vantagens associadas, o que foi recusado, tendo o funcionário optado por apresentar a queixa que deu origem ao processo que agora chega ao Supreme Court.

A primeira instância deu razão à agência funerária: entendeu que a orientação sexual ou a situação de transgénero não são abrangidos pela proibição de discriminação do Título VII do Civil Rights Act e que, apesar de a imposição de um dress code ser em princípio proibida por se basear em estereótipos determinados pelo sexo, a agência funerária, vistas as circunstâncias específicas do caso, estava excluída de tal proibição ao abrigo da liberdade religiosa (Religious Freedom Restoration Act de 1993).

O Court of Appeals revogou a decisão de primeira instância, considerando não apenas que a proibição do Título VII do Civil Rights Act era plenamente aplicável a casos de discriminação de pessoas transgénero, mas também que “em nenhuma circunstância a ‘estereotipação sexual’ baseada no comportamento não conforme com o género pode ser uma discriminação admissível”.

No passado dia 8 de outubro realizou‑se a audiência pública em Washington, perante os juízes do Supreme Court (cuja transcrição é livremente acessível no site do tribunal). Numa notável demonstração do que deve ser o papel de advogados e juízes numa audiência – procurando esclarecer e ser esclarecidos e não se deixando enredar em discursos para si próprios ou para uma plateia –, as questões suscitadas e debatidas cobriram um vastíssimo leque de áreas: serão “sexo”, “orientação sexual” e “identidade de género” conceitos distintos ou poderão todos ser englobados na proibição de discriminação com base no “sexo”? Poderá o poder judicial ampliar por via interpretativa a noção de “sexo” plasmada pelo legislador em 1964 no Civil Rights Act, ou constituirá isso uma violação da separação de poderes? Serão as crenças do empregador motivo suficiente para legitimar o despedimento de trabalhadores que não se adequem aos seus padrões religiosos?

Inúmeras organizações (desde organizações religiosas a defensoras dos direitos civis) intervieram no processo. Quando o caso já estava pendente, a Administração Trump, através de uma orientação do advogado‑geral Sessions, ordenou que o Department of Justice defendesse que “a proibição de discriminação com base no sexo abrange a discriminação entre homens e mulheres mas não inclui a discriminação baseada na identidade de género”.

A expectativa em torno da decisão final do caso é grande, não só pela importância do caso em si, mas também para aferir das consequências que terão tido no equilíbrio de tendências no Supremo Tribunal as recentes nomeações de juízes. Ampliando ainda mais a expectativa, a decisão final deverá ser conhecida em junho de 2020, a meio de uma campanha presidencial que vai dividir ainda mais uma sociedade já de si altamente polarizada.

Qualquer que seja a decisão, uma coisa é certa: teremos mais um caso em que involuntariamente os tribunais serão protagonistas de uma campanha eleitoral.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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