Chefe de gabinete de Trump admite troca de favores com a Ucrânia – mas depois recua e culpa os jornalistas

Numa conferência de imprensa em que começou por anunciar a organização da próxima cimeira do G7 num resort de Donald Trump, Mick Mulvaney desmentiu o Presidente Trump e deu mais força ao processo de impugnação lançado pelo Partido Democrata.

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O responsável disse aos jornalistas para "ultrapassarem" a questão da Ucrânia Reuters/LEAH MILLIS

Os esforços do Partido Democrata para acusar o Presidente norte-americano, Donald Trump, de crimes puníveis com o seu afastamento do cargo, receberam um forte impulso de um dos sítios mais improváveis. Numa conferência de imprensa marcada por um outro anúncio polémico, na quinta-feira, o chefe de gabinete da Casa Branca admitiu que houve mesmo uma tentativa de troca de favores entre Trump e o Presidente da Ucrânia com objectivos políticos – precisamente a acusação que é feita para justificar a impugnação do Presidente norte-americano, e que Trump tem negado com veemência nas últimas semanas.

Mick Mulvaney entrou na sala de imprensa da Casa Branca à hora de almoço, na quinta-feira, para fazer um anúncio que, noutros tempos, marcaria a discussão política nos EUA nas horas e dias seguintes, se o que disse a seguir não fosse ainda mais controverso e perigoso para a posição de Donald Trump.

Primeiro, o anúncio polémico: depois de estudar dez locais para receber a cimeira do G7 no próximo ano, a Administração Trump decidiu que o local mais indicado é o Trump National Doral, um resort de luxo a poucos quilómetros do aeroporto internacional de Miami, com 643 quartos, quatro campos de golfe e um relatório de contas em declínio acelerado desde 2015, segundo uma investigação do Washington Post publicada em Maio passado.

Tal como o nome indica, o Trump National Doral faz parte do património da Trump Organization, a empresa fundada pelos pais de Donald Trump em 1923, detida na totalidade pelo Presidente norte-americano e dirigida actualmente pelos seus filhos Donald Trump Jr. e Eric Trump.

O anúncio de que os líderes das maiores economias mundiais, e pelo menos uma parte das respectivas delegações (e os contribuintes norte-americanos), vão pagar para ficarem alojados num resort da empresa do Presidente que os convida foi criticada por vários grupos de defesa da transparência na vida política.

“A decisão do Presidente Trump confirma o que sempre soubemos: a menos que os tribunais exijam rapidamente ao Presidente que aja de acordo com as palavras dos fundadores da América, a lei que proíbe o recebimento de compensações vindas do estrangeiro sem autorização do Congresso vai perder os seus efeitos práticos”, disse num comunicado a presidente do Centro de Responsabilidade Constitucional, Elizabeth Wydra, que é também advogada num dos processos que correm nos tribunais norte-americanos contra o uso de um outro hotel de Trump, nas imediações da Casa Branca, por representantes de governos estrangeiros.

No Partido Democrata, a reacção foi ainda mais violenta: “Organizar a cimeira do G7 no resort em declínio de Trump é um dos mais escandalosos exemplos de corrupção e favorecimento pessoal na Presidência mais corrupta da nossa história. Os governos estrangeiros não devem ser forçados a encher os bolsos de Donald Trump”, disse o senador Ron Wyden, da Comissão de Finanças da câmara alta do Congresso norte-americano.

Alvos: Joe Biden e Partido Democrata

O anúncio sobre a cimeira do G7, feito, durante a conferência de imprensa de Mick Mulvaney, seria suficiente para deixar qualquer outra Administração norte-americana em modo de pânico, mas acabou por se transformar numa simples sobremesa quando o chefe de gabinete da Casa Branca pôs em cima da mesa o prato principal. Em causa estava a acusação de que o Presidente Trump pressionou a Ucrânia a abrir uma investigação criminal contra Joe Biden, um dos seus possíveis adversários nas eleições de 2020.

No centro do processo que o Partido Democrata lançou na Câmara dos Representantes para impugnar o Presidente norte-americano está a acusação de que Trump, o seu advogado pessoal e alguns funcionários ligados ao Departamento de Estado montaram uma campanha de pressão sobre o Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky.

Em particular, Trump é acusado de querer forçar Zelensky a comprometer-se em público com a abertura de uma investigação por corrupção contra Joe Biden e o filho, Hunter Biden, que foi contratado em 2014 para a direcção da empresa ucraniana Burisma – numa altura em que o seu pai, então vice-presidente dos EUA, se ocupava das relações entre os dois países na ressaca da revolução que depôs o Presidente pró-russo Victor Ianukovich.

Para além disso, o Presidente norte-americano teria exigido que a Justiça ucraniana investigasse a teoria da conspiração, nascida no site Breitbart, de que os ataques contra os e-mails do Partido Democrata e de Hillary Clinton, em 2016, foram lançados pela Ucrânia e não pela Rússia – o objectivo de Kiev seria incriminar Moscovo e forçar uma ligação de Vladimir Putin a Donald Trump.

Não há indícios de que os Biden tenham cometido qualquer crime (apesar da acusação de que pode ter existido um conflito de interesses), e a tese da conspiração ucraniana é contrariada pelo consenso na comunidade de serviços secretos dos EUA, e pelos dois anos de investigações da equipa do procurador especial Robert Mueller, de que a campanha de desinformação e propaganda contra as eleições presidenciais de 2016 foi executada pela Rússia.

Na conferência de imprensa de quinta-feira, Mick Mulvaney admitiu que o objectivo era mesmo que a Ucrânia investigasse a empresa Burisma, entre outros casos de corrupção, em troca do desbloqueamento de um pacote de ajuda militar de quase 400 milhões de dólares ao Governo de Kiev, que a Casa Branca reteve nos cofres norte-americanos mesmo depois de receber autorização do Congresso para o envio.

“Voltar a olhar para o que aconteceu em 2016 fazia parte das preocupações [do Presidente Trump] sobre corrupção naquele país, e isso é perfeitamente admissível”, disse o chefe de gabinete da Casa Branca quando foi questionado sobre se a exigência de uma investigação sobre o Partido Democrata foi uma das razões que levou a Casa Branca a reter o financiamento destinado à defesa da Ucrânia contra os separatistas pró-russos no Leste do país.

“Ele também mencionou a corrupção relacionada com o servidor do Partido Democrata?”, disse Mulvaney referindo-se a Trump. “Absolutamente. Não há dúvidas sobre isso. Foi por isso que retivemos o dinheiro”.

"Esqueçam isso"

“Na política externa estamos sempre a fazer isso. Ao mesmo tempo, estávamos a reter dinheiro para os países do Triângulo Norte [Guatemala, Honduras e El Salvador] para que eles alterassem as suas políticas de imigração. E tenho uma notícia para vocês todos. Esqueçam isso. Haverá sempre influência política nas relações internacionais”, afirmou Mulvaney.

A comparação entre os dois casos acabou por ser aproveitada pelo Partido Democrata para reforçar a ideia de que o Presidente Trump tem mesmo de ser acusado de abuso de poder na Câmara dos Representantes, para depois enfrentar um julgamento no Senado – algo que o próprio Partido Republicano admite que pode acontecer até ao final do ano.

“Temos uma confissão”, disse o congressista Eric Swalell, do Partido Democrata, salientando que reter financiamento em nome do interesse nacional dos EUA não é o mesmo que reter financiamento em nome do interesse de Donald Trump e da sua candidatura às eleições de 2020.

Segundo os media norte-americanos, a conferência de imprensa de Mick Mulvaney deixou vários funcionários da Casa Branca em choque, e ao fim da tarde o chefe de gabinete do Presidente Trump emitiu um comunicado a acusar os jornalistas de terem interpretado mal as suas palavras.

“Mais uma vez, os media decidiram interpretar mal as minhas declarações para promoverem a sua caça às bruxas contra o Presidente Trump”, disse Mulvaney. “Deixem-me ser claro: não houve absolutamente nenhuma troca de favores entre a ajuda militar ucraniana e qualquer investigação às eleições de 2016. O Presidente nunca me disse para reter qualquer financiamento até que os ucranianos fizessem alguma coisa relacionada com o servidor [do Partido Democrata].”

Apesar do recuo, e de os chefes de gabinete da Casa Branca estarem mais protegidos das intimações da Câmara dos Representantes para serem ouvidas sob juramento, a conferência de imprensa de quinta-feira pode marcar um antes e um depois no processo de impugnação contra o Presidente Trump – um processo essencialmente político e que vive muito do apoio ou da oposição do grande público.

Nas últimas semanas, as três comissões da Câmara dos Representantes que estão a investigar as suspeitas sobre a Casa Branca ouviram várias testemunhas importantes. A antiga embaixadora dos EUA em Kiev, Marie Iovanovich, acusou Trump de a despedir, em Maio passado, sem haver razões para isso relacionadas com o desempenho das suas funções; o ex-enviado especial para a Ucrânia, Kurt Volker, revelou mensagens de texto que mostram um diplomata de carreira a acusar a Casa Branca de pressionar a Ucrânia para beneficiar a campanha eleitoral de Trump; e uma antiga funcionária de topo do Conselho de Segurança Nacional, Fiona Hill, disse que o seu chefe de então, John Bolton, lhe pediu para contar aos advogados da Casa Branca que Giuliani estava a organizar um plano com a Ucrânia de que ele não queria fazer parte.

E o secretário da Energia, Rick Perry, outro dos nomes envolvidos na campanha de pressão da Casa Branca sobre a Ucrânia, juntamente com Giuliani e o embaixador dos EUA na União Europeia, Gordon Sondland, anuciou que está de saída do cargo depois de ter sido intimado a testemunhar no Congresso.

Noutros tempos, estas revelações poderiam levar alguns congressistas do Partido Republicano a deixarem cair o seu apoio ao Presidente, mas ainda não há sinais de que isso possa acontecer neste caso. Se o processo de impugnação vier a ser votado e aprovado na Câmara dos Representantes, como parece ser cada vez mais provável, o Presidente Trump só será afastado da Casa Branca se essa acusação for aprovada no Senado por pelo menos 67 senadores em 100 – para isso, o Partido Democrata teria de convencer, no mínimo, 20 republicanos a virarem-se contra o seu Presidente.

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