O “Brexit” pode ser apenas um sintoma

Para aqueles que se agarram à ideia de que, sem o Reino Unido, os europeus ficariam mais unidos, chegou talvez o tempo de acordarem.

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1. Quando tudo parece indicar que, finalmente, um acordo está ao alcance da mão entre a União Europeia e o Reino Unido, depois de um desgastante processo negocial, vale a pena deixar de olhar apenas para as árvores e tentar abarcar a floresta. Há três anos o resultado do referendo britânico apanhou toda a gente de surpresa. Até então, a hipótese de um país sair da União não era sequer considerada. David Cameron não tinha pensado dois minutos sobre a possibilidade de um resultado negativo. Nesse ano e quase em simultâneo, a Europa somou ao choque do “Brexit”, o choque da eleição de Donald Trump. Nada voltou a ser igual, mesmo que os governos e as instituições europeias tenham sempre bastante dificuldade em reconhecer a realidade. A estratégia europeia resumiu-se a um objectivo central: negociar de tal forma que dissuadisse qualquer outro país de seguir as pisadas do Reino Unido. Inicialmente, o debate foi sobre uma saída suave, à norueguesa, em que o Reino Unido se manteria no Mercado Único, tornando mais fácil a resolução da fronteira entre as duas partes da Irlanda. Rapidamente se verificou que não era essa a intenção da maioria do Partido Conservador, desejoso de cortar todas as amarras com o continente. Prevaleceu um hard Brexit que tornou mais difícil a questão irlandesa. Theresa May conseguiu negociar o backstop, que Boris Johnson tratou de pôr imediatamente em causa, passando a brandir a ameaça constante de uma saída sem acordo. A União Europeia também se mostrou intransigente, em nome da inviolabilidade do Mercado Interno e na defesa dos interesses de Dublin.

2. Ao longo do tempo, somaram-se os cenários e os prognósticos, quase todos de mera incidência económica. Previram-se catástrofes para a economia britânica, que nunca aconteceram e não se espera que venham a acontecer. Chegada a hora da verdade, convém olhar para as coisas com distância e realismo. Em primeiro lugar, a previsão da catástrofe era manifestamente exagerada. A economia britânica aguentou bem as consequências da saída, que foram sendo antecipadas nas decisões de empresas e de consumidores. Evitou a recessão. Mantém uma taxa de desemprego muito baixa e o problema das empresas é a falta de mão-de-obra e não a necessidade de despedir, mesmo que isso tenha acontecido em alguns sectores específicos como a indústria automóvel. O investimento continua a fluir e a City continuará a contar como uma das maiores praças financeiras do mundo. O Reino Unido é a quinta economia mundial, empatada com a França. O sector dos serviços é dominante e tem, em boa parte, dimensão mundial. O comércio com a Europa representa cerca de 50% das importações e das exportações um valor bastante inferior ao da generalidade das economias europeias, muito mais dependentes do mercado interno. Os britânicos vão atravessar momentos difíceis, mas os cálculos sobre a perda de poder de compra a dez anos não são, longe disso, assustadores. Vão ter de negociar novos acordos de comércio com as grandes economias mundiais, mas a sua economia continua a ser atractiva – pela dimensão e pela flexibilidade. Têm algumas das universidades mais prestigiadas do mundo e lideram em muitos domínios da I&D.

3. Mas a questão fundamental não é a economia, mesmo que seja ela que domina a maioria das análises. O “Brexit” não é um fenómeno isolado, atribuível apenas ao proverbial eurocepticismo britânico. É um sintoma. Se correr relativamente bem, haverá provavelmente outros países a equacionar a mesma possibilidade. Não é uma fatalidade. Mas se a Europa não conseguir vencer a crise interna que a está a destruir aos poucos, reencontrando um propósito comum, o caminho da fragmentação dos últimos anos agravar-se-á. A fractura Leste-Oeste não pára de aumentar. O desafio migratório não encontra uma resposta conjunta. O abandono americano da liderança mundial e da aliança transatlântica deixa-a indefesa perante um mundo que é cada vez mais o resultado da relação de forças entre grandes potências. A retirada dos EUA do Médio Oriente, abre espaço à Rússia e deixa a Europa sem capacidade de resposta. A saída do Reino Unido enfraquece ainda mais a sua capacidade de defesa, deixando a França sozinha, enquanto Macron tenta pressionar Berlim a assumir maiores responsabilidades tarefa quase sempre inglória. Sem os EUA e o Reino Unido, os países do arco atlântico como Portugal, Dinamarca ou Holanda – perdem influência, obrigando-os provavelmente a terem de fazer das fraquezas forças para recriar um eixo atlântico que compense em parte a ausência britânica. A Alemanha preocupar-se-á cada vez mais com a sua vizinhança no Leste e no Centro da Europa. A França tentará preservar o seu papel de charneira. Mas encontrar novos equilíbrios de poder não será fácil

4. Basta olhar para a intervenção militar da Turquia contra os curdos da Síria, aproveitando a retirada americana, para se ter a antevisão de um futuro que é bastante assustador. Sem capacidade para pressionar Ancara, os europeus assistem impotentes ao avanço do eixo Moscovo-Damasco-Teerão para ocupar o espaço deixado vazio pela América. Mas o que veremos a partir de hoje em Bruxelas, numa cimeira europeia dedicada ao “Brexit”, será uma Europa profundamente dividida e impotente perante o que a rodeia. Da Síria ao Irão, passando pela Rússia e incluindo as negociações ferozes sobre como distribuir um orçamento comunitário que pode nem chegar a ser um por cento do PIB europeu. Para aqueles que se agarram à ideia de que, sem o Reino Unido, os europeus ficariam mais unidos, chegou talvez o tempo de acordarem.

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