É o Amor que vence o cancro

Dizer que o cancro foi uma lição de vida parece um cliché mas é, no entanto, a realidade. Sempre que volto ao IPO, agora para consulta de rotina, felizmente, sinto que volto aos bancos da escola.

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Daquele dia recordo a minha solidão dentro da máquina, com o contraste e a ansiedade nas veias, completamente despreparada para uma poeira de cancro, 12 anos depois de ser varrido. Acho que ninguém está disponível para um primeiro, muito menos para um segundo diagnóstico, com esta distância temporal mas que a nossa memória logo aproxima por um intervalo de tempo tão infinitesimal, parecendo carregar sensações do tratamento.

Naturalmente, que com mais maturidade, uma família com filhos, conhecimento de causa, o direito à revolta ganha votos e ninguém nos pode negar o espaço para recuperar a aceitação. Paralisei com a notícia, tive medo, a ideia de morte assombrou-me. O cancro mata cada vez menos, mas ainda deixa órfãos e quem lida com doentes sabe mais do que se estimam nas taxas estatísticas pois sabe de gente, gente que parte e que guardamos no coração. Por isso, é tão importante um diagnóstico precoce, assim como o calor de um familiar, um abraço de um amigo, e quem sabe o testemunho de um doente.

Recordo, este calor, estes abraços e sinto que foi também isso que me fez agarrar à vida como uma lapa.

A minha segunda casa, o IPO, tornou-se um porto seguro e um local de retiro que me permitiu voltar a mim. As conversas que tive com os livros que lia à janela, à espera de ver duas crianças que me faziam falta e, quando as tentava tocar sentia apenas um vidro frio. No horizonte, um mundo à minha espera com uma dimensão bem maior do que o que tinha deixado ficar pois queria vivê-lo mais, e essa foi a promessa que me fiz.

Ao meu lado, a companhia diária e ininterrupta de uma máquina de químicos que não me largava durante cinco dias, o que por vezes me causava mau estar e me fazia largar a janela e voltar para o quarto. Às vezes quando voltava ao quarto havia um lugar vazio e isso doía mais que a dor dos tratamentos. Os quartos no serviço de hematologia do IPO não tinham sexo, na maioria dos casos eram enfermarias com quatro camas podendo ser divididas entre homens e mulheres consoante as combinações possíveis para cada dia e hora. Neste local somos genuinamente pessoas, pouco importando o sexo, raça, religião ou cor política.

Por isso, dizer que o cancro foi uma lição de vida parece um cliché mas é no entanto, a realidade. Sempre que volto ao IPO, agora para consulta de rotina, felizmente, sinto que volto aos bancos da escola. Continuo a ver os auxiliares, enfermeiros e médicos numa missão tão nobre de atender a todos, mesmo tendo cada vez menos tempo médio para o fazer.

As salas com mais doentes mas onde ainda ecoa o silêncio pausado por murmúrios de tolerância, o que demonstra a aceitação do sofrimento, na mais pura das formas. Repenso sempre em quanto reclamamos, desnecessariamente, no mundo cá fora por motivos vazios de razão.

Reconheço o olhar de muitos com medo e esperança nas pálpebras. Falamos a mesma linguagem, tão universal a quem tem cancro.

Aprecio os gestos de amor dos familiares que tão pacientemente nos acompanham, que escondem as lágrimas com sorrisos num rosto amedrontado e que fingimos não reparar.

E sinto mais uma vez que é o Amor que vence o cancro, assim como, que em tudo existe um propósito.

O meu talvez tenha sido saber parar, deixar de ser quase workaholic para dar vez à lifeaholic que vive na gratidão, no sonho de viver melhor, que o amanhã é o presente, que parar é tão importante quanto ir, que errar não é assim tão grave e que um dia sem abraços não é dia, é apenas uma contagem de tempo.

Autora do blogue www.viver100cenas.com

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