O Adamastor entrou na minha vida sob a forma de carcinoma

Comecei a trabalhar diariamente a forma como reagia às coisas e, em tom de mantra pessoal, repetia para mim que “Eu hoje posso estar mal, mas sei que amanhã vou estar melhor”.

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Sarah Cervantes/Unsplash

Foi num dia como outro qualquer – em que o sol nasceu e se pôs no ponto cardeal esperado, em que a vida seguia o seu fluxo habitual – que eu senti que algo de diferente se manifestava no meu corpo. Ainda não sabia o que era, mas sentia que iria ser o início de uma jornada que exigiria de mim uma redobrada capacidade de superação.

Eu era a mesma mulher que no dia anterior, aparentemente saudável, mas naquela noite, enquanto estava a tomar banho, detectei uma alteração no meu corpo que me deixou em estado de alerta e com medo de ouvir o que não estava preparada para aceitar.

Aliás, ninguém está preparado para receber um diagnóstico oncológico, mas a verdade é que quando ele entra na nossa vida, podemos aceitar e ultrapassar ou lutar contra essa nova realidade.

Confesso que tive tendência para me agarrar com todas as forças à minha vida anterior. Aquela em que, com alguma ingenuidade, julgava ter todo o tempo do mundo para cumprir os meus planos de vida. Mas essa noção oceânica da vida transformou-se, inesperada e figurativamente falando, numa tempestade em alto mar.

O gigante Adamastor entrou na minha vida sob a forma de carcinoma invasor com focos ductais in situ e metastização axilar, grau 3, receptores hormonais e Her2 positivos, grau de proliferação superior a 75%.

Cumpri o protocolo de oito ciclos de quimioterapia de três em três semanas. Um mês após o seu término, entrei no bloco para a mastectomia radical modificada com esvaziamento axilar, seguida de 25 sessões de radioterapia, dez meses de anticorpo e o tratamento hormonal durante cinco anos (injecções mensais) e dez anos (comprimidos diários), ainda a decorrer.

Não sei identificar o momento em que deixei de lutar contra a maré e iniciei a minha cura emocional. Mas sei o que me fez querer mudar a minha postura face ao problema, e prendeu-se com uma frase do médico que me disse que 50% de uma resposta positiva dependia dos tratamentos e os restantes 50% dependiam de mim.

Até ali eu sentia-me impotente, mas aquela frase devolveu-me a possibilidade de voltar a ter controlo sobre a minha vida e capacitou-me da força e da vontade de fazer cumprir os 50% que estavam na minha mão.

Comecei a trabalhar diariamente a forma como reagia às coisas e, em tom de mantra pessoal, repetia para mim que “Eu hoje posso estar mal, mas sei que amanhã vou estar melhor”. Acompanhei todos os ciclos de quimioterapia com reiki e ao longo de todo o processo tive sempre a minha família e uma grande amiga do meu lado que, ainda que não pudessem aliviar a dor, caminharam lado a lado não permitindo que este fosse um percurso solitário.

Não existe uma fórmula mágica que nos ensine a lidar com esta nova realidade e grande parte dos estudos incidem sobre os efeitos visíveis, ficando de fora todos os efeitos emocionais e físicos que não se traduzem em alterações visuais do corpo.

E são esses os aspectos sobre os quais importa reflectir, pois são eles que ditam a qualidade de vida dos pacientes, quer durante os tratamentos, quer após o término dos mesmos.

É urgente olhar para as condições físicas e emocionais dos sobreviventes e arranjar mecanismos de reintegração que passam por um aumento da consciencialização da sociedade face a essas condições, e introduzir processos de reestruturação emocional que permitam ultrapassar o stress pós-traumático do sobrevivente mas também do cuidador. 

Ninguém nos garante quanto tempo nos resta para viver e é nosso dever celebrarmos os dias com a intensidade de uma vida, mantendo sempre presente a importância da prevenção para a manutenção da nossa saúde.

Arquitecta

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