Um assalto premeditado aos nossos futuros recursos

Como é possível imaginar que, num pequeno país europeu, há recursos essenciais que ficarão nas mãos de apenas uma empresa?

Foi com choque que li a notícia do Expresso de que o agora reconduzido Governo do PS quer entregar, “em exclusivo” e sem concurso público, o negócio de recolha de resíduos orgânicos urbanos a uma empresa do grupo Mota-Engil. Parece um assunto menor e remoto, mas não é. Explico porquê.

Bastaram-me umas semanas na Universidade de Harvard a ouvir cientistas falar sobre alterações climáticas para confirmar que os maiores desafios que Portugal enfrenta no futuro próximo são muito específicos: não tanto a subida do nível dos mares, os fenómenos climatéricos extremos ou o aumento das temperaturas – de que tanto se fala –, mas antes as agruras, já sentidas com veemência, da desertificação e das secas prolongadas.

A solução para esses problemas não passa por bombeiros a distribuir água por populações remotas nem, como poderia aventurar Donald Trump, por ter mais garrafas de água disponíveis nos supermercados. Mas passará, em parte, pela distribuição em massa de composto orgânico proveniente dos resíduos das nossas cidades. Cada município urbano pode sustentar a área rural envolvente, contribuindo para a inversão da atual aceleração da erosão dos solos.

Como em muitos outros aspetos da crise ambiental que aí vem, isto constitui um desafio para alguns interesses instalados, mas também uma oportunidade para novas formas de negócio, que poderão criar uma sociedade mais equilibrada, mais equitativa, menos poluída e menos dependente de processos industriais nocivos.

Assim, devíamos estar já a instituir redes de compostagem municipais com caráter industrial, de modo a providenciar respostas essenciais para um futuro mais sustentável, mas, também, a estimular a participação das populações num esforço verdadeiramente meritório para responder a efeitos perniciosos da crise ambiental.

Porém, será apenas a reboque de normativas europeias que em 2023 nos veremos ‘obrigados’ a iniciar o processo de recolha seletiva dos resíduos urbanos que permitem a compostagem orgânica. E, entretanto, aqueles que estão habituados a viver para a lógica do lucro à base da conivência com governos pouco transparentes já estão a afiar as suas garras.

O meu choque perante a notícia agora publicada adveio certamente de, mais uma vez, se pressentir aqui o odor do compadrio, das negociatas obscuras e das portas giratórias que provém dos lados do Ministério do Ambiente desde que o ex-primeiro-ministro José Sócrates lá deixou o ar da sua graça. Mais ainda, porém, o meu choque adveio de, mais uma vez, ver os parcos recursos do meu país irem parar às mãos de alguns, muito localizados e muito bem relacionados, interesses privados.

Neste caso, perante uma crise ambiental cujos contornos avassaladores poucos parecem ainda perceber, falamos de recursos fundamentais para uma economia circular que, gradualmente, virá substituir a nossa economia corrente de extração, rendas descaradas e consumo conspícuo. Sim: o lixo destinado à reciclagem, tal como os resíduos orgânicos destinados à compostagem, a água dessalinizada ou a produção de energia a partir de fontes renováveis serão as verdadeiras commodities do futuro.

Como é então possível imaginar que, num pequeno país europeu, esses recursos essenciais ficarão nas mãos de apenas uma empresa?

Já se perceberam as movimentações parlamentares para limitar a possibilidade de o cidadão comum poder participar na cogeração de energia solar e, nomeadamente, poder vir a vender energia à rede – outro dos escândalos que vai emergindo por entre as malhas da ignorância que a população portuguesa vota aos assuntos de ordem ambiental.

Agora, o escândalo da Mota-Engil e dos resíduos orgânicos, não passa tanto por contornar as leis da concorrência, ou de ir contra novas formas de economia partilhada e descentralizada. Esse não é o assunto que aqui está em questão. O que aqui está em questão é uma tentativa de assalto organizado e premeditado aos recursos do país por um pequeno grupo de malfeitores bem-informados e bem-engravatados. E, nesses momentos, é imperativo juntarmos o poder da nossa voz às denúncias da imprensa livre.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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