Freitas do Amaral: o patriota cosmopolita

O culto irrenunciável da racionalidade fazia com que nunca cedesse ao preconceito, às verdades estabelecidas, à tradição pela tradição.

1. Prometi que, na primeira oportunidade, escreveria sobre Freitas do Amaral. Devo-lhe isso, especialmente pelo convívio mais próximo nos três ou quatro anos da viragem do século. E muito mais importante, devo-lhe porque Portugal – o Portugal que ele tão ostensivamente amava – lhe deve isso.

2. A fundação do CDS, no contexto do processo revolucionário e da vertigem militar-socialista, representou um acto de ousadia e uma enorme prova de confiança na viabilidade da democracia. Por um lado, Freitas do Amaral não teve receio de criar uma força política no espectro direito do leque partidário, assente nos valores na democracia-cristã. A ideologia democrata-cristã, só por si, garantia a moderação e congraçava a recusa de qualquer desvio de direita radical ou de cariz ditatorial ou populista. A capacidade de atracção de quadros pelo CDS e pela sua liderança foi absolutamente surpreendente, a ponto de ter feito do CDS um caso paradigmático de um “partido de quadros”. Por outro lado, a criação do partido significava um acto de fé na afirmação de uma democracia plural de tipo ocidental e, ao mesmo tempo, contribuiu activa e decisivamente para que ela se estruturasse e consolidasse. Não menos importantes foram a convicção e a boa fé com que, ao lado de Amaro da Costa, abraçou o projecto da AD. Também aqui, e mais uma vez, foi capaz de compreender como a formação de um projecto político de vocação maioritária com o eixo no centro-direita era o maior contributo para garantir solidez e autenticidade à democracia nascente. Não pode, em caso nenhum, passar despercebido o seu múnus governativo nas pastas dos Negócios Estrangeiros e da Defesa. Com efeito, também pelo prestígio de que gozava na União Europeia das Democracias Cristãs, o seu papel para a consolidação do nosso processo de adesão europeia foi notável. O “federalismo” europeísta era um dos pilares do seu credo político a que se manteve persistentemente fiel. Deve-se-lhe ainda o passo determinante da subordinação das Forças Armadas ao poder civil, vista por ele como um ingrediente indispensável à implantação plena da democracia. Nunca será demais, aliás, encarecer a devoção e o respeito que votava às forças militares e ao seu papel histórico na afirmação nacionalidade e da independência.

3. O seu projecto de candidatura presidencial – P’rá Frente Portugal – não foi apenas o momento alto da sua carreira política: foi, para quem viveu aquela campanha, uma festa de patriotismo e de alegria. E teve, tal como a AD em seu tempo, um impacto decisivo na mudança do ciclo político em Portugal. Na verdade, isto é raramente dito e mais raramente reconhecido, as maiorias absolutas de Cavaco Silva só foram possíveis porque a campanha presidencial de Freitas do Amaral federou todo o espaço que ia da direita até ao centro, quiçá ao centro-esquerda. Sim, os hoje nostálgicos da AD fazem tudo por obnubilar isso, mas já a AD integrou generosamente os “reformadores” (dissidentes do PS) e os ecologistas do PPM de Ribeiro Telles (muito à frente, em termos de defesa dos valores ambientais, da actual deriva “animal-populista” do PAN). Em 1979, cada um destes segmentos tinha 5 deputados na Assembleia, bem acima da sua efectiva radicação no eleitorado. Sobre a moderação e o equilíbrio das posições políticas de Freitas do Amaral (e já agora de Sá Carneiro), não creio que seja preciso dizer mais.

4. No plano estritamente profissional, pontifica o investigador, o professor, o pedagogo, o formador de escola, o jurisconsulto. A sua escrita – elegante, enxuta e simples – brilhava pela racionalidade cartesiana. O seu discurso oral, claríssimo e distinto, era da ordem do eloquente. A visão global e abrangente, que não se fechava no direito, mas se abria à história e filosofia, às artes e à ciência, era própria do humanista, de um humanista de quinhentos ou seiscentos. A compreensão aberta e larga da universidade está bem documentada no incentivo e no ânimo que dava a todos os alunos e a todos aqueles que orientava na obtenção de graus académicos superiores. O progresso dos seus discípulos e das suas disciplinas deixava-o genuinamente feliz: o avanço da ciência era para ele motivo de alegria. Era profundamente aberto à inovação e cultivava a curiosidade e o espanto – o espanto que está nos primórdios da filosofia – como poucos. O culto irrenunciável da racionalidade fazia com que nunca cedesse ao preconceito, às verdades estabelecidas, à tradição pela tradição. É justamente este traço de personalidade que explica a fundação da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Também aí ficaram cunhadas a sua ousadia e a sua coragem, o voluntarismo sensato a que a ponderação racional dos argumentos sempre o conduzia. Com esse gesto, rompeu e inovou; e provocou uma mudança coperniciana no ensino do Direito em Portugal. Por muito que isso custe aos mais conservadores e tradicionalistas, depois desse rasgo, nada ficou como dantes em nenhuma das mais vetustas escolas de Direito.

5. Para quem pôde lidar de perto, ficará sempre a racionalidade, a moderação, o ânimo, a fleuma, a capacidade de organização, a disposição de ouvir, a inigualável propensão para resolução de problemas. Para um homem daquela compleição teórica era impressionante o seu “espírito prático”. Sim, era espírito prático e não pragmatismo – o hoje tão incensado, comum e conveniente pragmatismo. A sua capacidade de organização e de direcção de uma reunião ou de corpos colegiais era absolutamente exemplar. Sob a sua batuta, havia tempo de falar, de escutar todos, de sumariar e de decidir. Começava-se a horas e saía-se à hora. A sua capacidade de síntese, muito aliada ao dito espírito prático, era lendária.

6. E depois havia nas entrelinhas de cada frase e de cada gesto, os seus dois amores: Portugal e a família. Estavam lá, estavam lá sempre, discretos, mas omnipresentes. Davam-lhe o sentido. O sentido de um português que soube ser cidadão do mundo.

Não Recep Erdogan e Turquia. A ofensiva turca na fronteira Norte da Síria é inaceitável a todos os títulos. O desastre humanitário está em curso e o risco de genocídio espreita.

Não Donald Trump. A retirada das forças americanas do território sírio tem consequências altamente nefastas (como já tivera a saída do Iraque). O terrorismo do Daesh pode voltar.

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