Charles Jencks (1939-2019): o teórico da arquitectura pós-modernista que criava paisagens felizes

O arquitecto paisagista e pioneiro do pós-modernismo morreu no domingo em Londres, aos 80 anos. Nas últimas décadas, o seu grande projecto foram os Maggie’s Centres, edifícios desenhados por grandes arquitectos para doentes com cancro.

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Charles Jencks na Fundação Calouste Gulbenkian em 2010 Miguel Manso

O arquitecto americano Charles Jencks, que morreu na noite de domingo na sua casa de Londres, ficará para a história como o corrosivo crítico da arquitectura moderna e o homem que quase inventou o pós-modernismo arquitectónico ab nihilo, tendo sido não apenas o grande teórico do movimento, mas também o seu historiador em tempo real. Mas Jencks, radicado no Reino Unido desde a década de 1960, foi também um inspirado arquitecto paisagista e o co-fundador, com a sua segunda mulher, a escritora e designer de jardins escocesa Margaret Keswick, dos Maggie’s Centres, uma rede de edifícios desenhados por arquitectos como Frank Gehry, Norman Foster, Rem Koolhaas ou Zaha Hadid para uso de doentes com cancro.

Nascido em Baltimore, em 1939, filho do compositor Gardner Platt Jencks, Charles Jenks licenciou-se na Universidade de Harvard, primeiro em Literatura Inglesa e depois em Arquitectura, tendo-se mudado em 1965 para o Reino Unido, onde se doutoraria em História da Arquitectura pela University College London com uma tese que depois desenvolveria no mais célebre dos muitos livros que publicou, Movimentos Modernos em Arquitectura, uma espécie de work in progress, que, desde o seu lançamento em 1973, o autor foi revendo e aumentando regularmente. Em Portugal, a primeira de várias edições saiu na Presença em 1985.

Movimentos Modernos em Arquitectura é uma das obras de teoria da arquitectura mais influentes do século XX, mas foi sendo também um livro um tanto “maldito”, diz ao PÚBLICO o arquitecto e professor de História e Teoria da Arquitectura Jorge Figueira: “Jencks faz um corte com a arquitectura moderna, declarando mesmo a sua morte, e tem um estilo muito assertivo e destrutivo, muito irónico, que criou grandes anticorpos, até entre os arquitectos mais pós-modernos, que não se reconhecem no seu discurso.” Um deles foi o americano Robert Venturi (1925-2018), pioneiro do pós-modernismo, o arquitecto que contrapôs à célebre máxima modernista de Mies van der Rohe, “less is more” (menos é mais), a cáustica réplica “less is bore” (menos é entediante).

“Entre 1977 e 1985, Jencks deitou a casa abaixo”, e fê-lo num estilo directo e espirituoso, e sem receio de chamar os bois pelos nomes, o que ofendeu o “tradicional decoro” do meio, comenta ainda Jorge Figueira, que em 2015 fez para o PÚBLICO uma extensa entrevista ao arquitecto, centrada no seu projecto de centros onde doentes oncológicos podem sociabilizar e receber informação e conselhos práticos. Em homenagem à sua mulher, que morreu de cancro em 1995 e que, tal como o marido, tinha a convicção de que a arquitectura podia animar e encorajar as pessoas, essas unidades ficaram conhecidas como Maggie's Centres. “Ele não era cínico, acreditava realmente que a arquitectura conta, achava que construir edifícios mais eclécticos e efusivos significava ter uma cidade melhor”, diz ainda Jorge Figueira.

O primeiro Maggie Centre abriu em 1996 em Edimburgo e a sua influência começou por se circunscrever à Escócia natal de Margareth. Mas a rede, presidida desde 2008 pela mulher do príncipe Carlos, Camilla, conta hoje com mais de uma vintena de edifícios, projectados por alguns dos mais importantes arquitectos do mundo, e já ultrapassou mesmo as fronteiras do Reino Unido com a inauguração de um centro em Hong Kong, desenhado pelo gabinete de Ronald Lu.

Para Figueira, uma das dimensões mais impressionantes da obra de Jencks é o modo como este “captou o que ia acontecer”, propondo uma tese para a qual ainda não dispunha verdadeiramente de prova. “No início, ele até foi buscar o Gaudí”, porque praticamente não havia ainda arquitectura pós-moderna construída que pudesse ilustrar as suas propostas; quando a realidade começa a confirmar as suas previsões, “torna-se o historiador do movimento à medida que as coisas iam acontecendo, em tempo real, e numa altura em que ainda não havia Internet”.

Um dos reparos de Jencks à arquitectura modernista era a sua austeridade e a sua insistência na funcionalidade, que tendia a dissipar o valor simbólico dos edifícios. Tomando como divisa o verso que abre o célebre poema Auguries of Innocence, de William Blake – “To see a World in a Grain of Sand” [num grão de areia, ver todo um mundo], Charles Jencks assumia-se como herdeiro espiritual do visionário poeta inglês e encarava o seu próprio trabalho como uma busca de “relações entre o grande e o pequeno, a ciência e a espiritualidade, o universo e a paisagem”.

E se as dezenas de livros que publicou – entre os quais se contam, além do já citado Movimentos Modernos em Arquitectura, títulos como Adhocism, onde defende um sentido do improviso e da urgência em detrimento de uma arquitectura demasiado planeada, Heteropolis: Los Angeles, the Riots and the Strange Beauty of Hetero-Architecture, no qual considera a arquitectura pós-modernista da Califórnia como uma expressão de “pluralismo cultural”, ou ainda The Architecture of Hope, acerca dos Maggie’s Centre – tornam Jencks um nome incontornável entre os teóricos da arquitectura, a sua própria obra, sobretudo enquanto arquitecto paisagista, está longe de ser negligenciável.

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Northumberlandia, talvez o mais ambicioso projecto de Charles Jencks DR

O Jardim da Especulação Cósmica, que criou na propriedade familiar da sua mulher, com núcleos como o Jardim DNA, o Passeio Quark, ou o Terraço Fractal, é um dos seus trabalhos mais conhecidos, mas desenhou vários outros projectos na Escócia, e também fora do Reino Unido, em Milão, na Coreia do Sul ou em Pequim. O mais ambicioso talvez seja Northumberlandia, inaugurado em 2012 no Norte de Inglaterra, cuja peça central é uma figura de mulher reclinada, com 34 metros de altura e cerca de 400 metros de comprimento, situada num parque público de 170 mil metros quadrados. Uma obra concebida para mudar com as estações do ano e para se ir transformando ao longo das gerações.

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