Depois da “geringonça”, as crises à vista

Os próximos anos serão mesmo os anos da verdade, já sem exercícios mágicos ou executados através de “geringonças”.

O fim da “geringonça” foi ditado, essencialmente, por duas razões. Primeira: porque a perigosa queda eleitoral do PCP não aconselhava amarrá-lo de novo a um compromisso escrito com um partido, o PS, de que os comunistas sempre desconfiaram como um aliado pouco fiável e eventualmente traiçoeiro. Segunda: porque não convinha de todo ao PS comprometer-se exclusivamente com o Bloco de Esquerda, tendo até em conta as condições que este colocava – e que implicavam a submissão dos socialistas aos bloquistas, nomeadamente no campo da legislação laboral.

Dito isto, e como já foi sublinhado, a “geringonça” tornara-se um anacronismo que apenas se justificou tendo em conta os resultados das legislativas de 2015, que o PS perdeu mas sem que a coligação PSD-CDS pudesse formar governo. Além disso, o compromisso escrito entre o PS e os seus aliados resultou de uma imposição do então Presidente Cavaco Silva, condicionando a liberdade de movimentos dos três parceiros. Finalmente, se a “geringonça” permitiu repor direitos e garantias dos trabalhadores que o “diktat” da troika havia sacrificado, a relação entre o PS, o PCP e o Bloco foi frequentemente pautada pela desconfiança, pela hipocrisia ou pela disputa azeda dos méritos das conquistas sociais levadas a cabo pelo Governo.

Afinal de contas, apenas o PS, embora sem a maioria absoluta que sempre desejou, colheu os louros eleitorais da “geringonça”, enquanto o Bloco e o PCP recuavam nas respectivas votações – o primeiro com brandura mas o segundo acentuando a sua prolongada crise existencial. Eis mais uma razão – embora só assumida de forma mais frontal pelos comunistas – para pôr fim aos compromissos escritos, deixando cada qual confrontado com as suas responsabilidades parlamentares, o que traz vantagens óbvias à transparência da vida democrática.

Mas o fim da “geringonça” coincide também com um tempo de incógnitas e ameaças no horizonte da vida portuguesa, especialmente quando as nuvens do abrandamento económico e da recessão voltam a ensombrar o mundo. Aliás, em Portugal vivemos já num ambiente de esquizofrenia económico-financeira: ao mesmo tempo que antecipamos o primeiro excedente da democracia, reforçando de forma notável a melhoria do saldo orçamental, vamos recuando para a cauda da Europa na produtividade e na riqueza. Ou seja: temos contas mais certas mas isso não significa que a vida nos corra melhor. A receita miraculosa de Centeno não chega para superarmos as insuficiências crónicas que, entretanto, se agravam. Por isso, os próximos anos serão mesmo os anos da verdade, já sem exercícios mágicos ou executados através de “geringonças”.

O espaço das antigas ideologias vai definhando – como mostram as crises agudas do comunismo ou da velha democracia-cristã, através do apagamento do PCP e do CDS –, enquanto a eleição de um deputado de extrema-direita tende a converter-se no acontecimento mais exacerbado das últimas legislativas. De facto, a vertigem do vazio ideológico – e o seu contraponto populista e xenófobo – constitui uma ameaça grave para a saúde da democracia, cada vez mais condicionada, por outro lado, pelo clientelismo das maiores máquinas partidárias, como o PS ou o PSD. E isso explica também o avanço do abstencionismo – mesmo tendo em conta a desactualização dos cadernos eleitorais.

Aquilo que deveria despertar os cidadãos – a mobilização pelos valores democráticos e ambientais (que hoje se tornou uma urgente questão de sobrevivência), a luta por uma sociedade mais justa e solidária – corre o risco de se diluir no conformismo, na indiferença ou no sentimento de inutilidade dos ritos eleitorais. É esse, de facto, um dos maiores problemas com que nos confrontamos. 

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