Centenas de militantes do Daesh fogem de prisão com ajuda de bombardeamento turco

Cerca de 800 jihadistas que estavam no campo de detenção de Ain Issa, no Nordeste da Síria, escaparam quando mercenários a combater com as tropas turcas o atacaram, na altura em que a Força Aérea turca bombardeava a zona. Multiplicam-se notícias de execuções sumárias de curdos feitas por estas forças irregulares.

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Milicianos do Exército Livre da Síria a participarem na ofensiva turca Reuters/KHALIL ASHAWI

O cenário que se temia com a ofensiva turca contra os curdos no Nordeste da Síria, da fuga de prisioneiros do Daesh que até agora eram mantidos em campos de detenção, está a acontecer: cerca de 800 militantes do Daesh fugiram neste domingo da prisão de Ain Issa, disse a administração autónoma curda, acusando a Turquia de ter dado “cobertura aérea” para que a fuga fosse bem-sucedida. Começaram também a surgir vídeos de execuções de civis e abusos contra prisioneiros de guerra às mãos de mercenários árabes que combatem ao lado do exército de Ancara.

“Pelo menos 785 militantes estrangeiros do Daesh escaparam hoje do campo de Ain Issa com a ajuda de mercenários e cobertura aérea de aviões turcos”, revelou a administração curda em comunicado no Facebook. “Os mercenários e tropas turcas atacaram a segurança do campo e criaram um corredor para que os combatentes estrangeiros do Daesh pudessem escapar”. A fuga foi mais tarde confirmada pelo porta-voz das Forças Democráticas da Síria (SDF), Mustafa Bali, ao dizer que “quase todos os suspeitos militantes do Daesh fugiram do campo”.

O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, com sede no Reino Unido, avançou que aldeias nas proximidades do campo foram bombardeadas pela Força Aérea Turca e por artilharia. Quando os mercenários dispararam e as bombas turcas caíram nas proximidades do campo, os guardas curdos abriram fogo e, ao mesmo tempo, os militantes detidos começaram a atacá-los. E, na confusão, abriram um dos principais portões e fugiram. Um responsável turco, citado pelo New York Times, disse que a bandeira do Daesh foi levantada no campo entre a cidade curda de Ain Issa e a fronteira turca.

Multiplicam-se as indicações de que os curdos estão a perder o controlo da região, que ainda há apenas alguns meses conseguiram limpar dos jihadistas. 

Há alguns dias, na iminência da ofensiva turca, os curdos viram-se obrigados a transferir a grande maioria dos 700 guardas para as linhas da frente e, quando o ataque se deu, a segurança do campo contava com 60 a 70 guardas curdos. Conseguiam controlar os detidos, mas não fazer frente a um ataque externo.

“A guarda era muito fraca”, disse Marvan Qamishlo, citado pelo Independent. “Não temos números suficientes”, acrescentou, referindo que o número ideal para uma segurança capaz no campo seria 1500. O campo de Ain Issa localiza-se a 50 km de Raqqa e estavam lá mais de 12 mil pessoas.

A localização dos campos de detenção de jihadistas geridos pelos curdos é bem conhecida pela Turquia, por integrar a coligação internacional contra o Daesh e a questão dos militantes estrangeiros da organização ser um dos grandes temas de discussão entre os membros da coligação. 

Antes da fuga, o Exército Livre da Síria, composto por milícias jihadistas treinadas e armadas por Ancara, tinha capturado a cidade de Suluk, a pouco mais de 40 km de Ain Issa. Nos últimos dois dias, os turcos conquistaram 25 vilas e entraram na cidade curda de Ras al-Ayn, registando-se intensos combates. 

Desde o início de Outubro que o Daesh não tem parado de dar sinais de renovada força na Síria. A ofensiva turca foi a oportunidade que precisava para, entre o caos, poder libertar os seus mais de 12 mil combatentes detidos em campos curdos. Neste contexto, os curdos vêem-se obrigados a combater em duas frentes – contra os turcos e contra o Daesh – e a situação no Nordeste da Síria está a “deteriorar-se rapidamente”, disse um elemento das Forças Armadas norte-americanas à Associated Press. Ainda que abandonados pelos Estados Unidos, os curdos continuam a cooperar com a coligação internacional contra o Daesh. 

Há mais de 130 mil civis deslocados e o número pode aumentar para os 400 mil, dizem as Nações Unidas, e a ameaça de genocídio curdo é cada vez maior. Apesar de os milicianos pró-turcos terem recebido ordens para não filmarem as suas actividades no Nordeste da Síria, muitos têm desobedecido e circulam nas redes sociais vídeos de execuções e abusos a prisioneiros de guerra curdos. 

Nove civis foram assassinados pelos milicianos a sul da cidade de Tal Abyad, por eles conquistada, e as execuções foram filmadas. Ouvem-se os milicianos a gritarem insultos aos civis antes de dispararem à queima-roupa. Entre os civis executados está a política feminista curda Hevrin Khalaf, do Partido Futuro Sírio: forçaram-na a sair do carro, e executaram-na à beira da estrada. Tê-la-ão violado e apedrejado, segundo alguns relatos.

A ofensiva turca, denominada “Operação Fonte da Paz”, começou há cinco dias. O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, quer criar uma “zona de segurança” para arabizar o Nordeste da Síria ao instalar ali mais de dois milhões de refugiados árabes sírios e, assim, alterar a composição demográfica em detrimento dos curdos. A Turquia considera existir uma continuidade entre as milícias YPG do Nordeste da Síria e o PKK curdo na Turquia, que classifica como uma organização terrorista, o que usa como pretexto para esta ofensiva além-fronteiras. 

Na vanguarda da sua invasão, Ancara apoia-se em milícias árabes formadas por elementos que viviam na zona da ofensiva e que foram também vítimas de deslocação forçada feita pelos curdos em 2015, com relatos de aldeias árabes a serem demolidas, diz o analista turco radicado nos Estados Unidos Soner Cagaptay. Muitos eram precisamente de Ras al-Ayn e Tel Abyad, as cidades que foram os primeiros alvos da ofensiva e que anteriormente tinham uma população de maioria árabe. Alguns juntaram-se ao Daesh, em busca de vingança contra os curdos, e agora combatem nas fileiras das milícias pró-turcas. 

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