A “caixa de boxe” do arquitecto é agora um parque infantil

Caixas de Boxe é o resultado de um ano de pesquisa do arquitecto mexicano Daniel De León Languré, que idealizou um ginásio ao ar livre onde o boxe servisse como ferramenta de activação cívica em áreas segregadas. No âmbito da Trienal de Arquitectura, a materialização do projecto aconteceu nas Olaias, no bairro Portugal Novo, naquela que é a primeira estrutura recreativa a aparecer no território nas últimas décadas. As crianças do bairro já o transformaram em parque infantil.

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No dia em que “a estrutura” — tubos de aço, dobrados e entrelaçados, cravados no chão, assentes em gravilha e areia — chegou ao Portugal Novo, os miúdos brincaram como se fosse uma coisa do outro mundo. O arquitecto que a concebeu idealizou uma “caixa de boxe”, procurando intervir no espaço público com uma infra-estrutura desportiva que desenvolvesse não só o corpo mas sobretudo a ligação entre os moradores. Um espaço de regras, mas também de encontros.

Os miúdos do bairro olharam e viram um parque infantil. Ainda a montagem da estrutura não estava finalizada, na primeira semana de Outubro, e já havia dezenas de crianças que trepavam, balouçavam, escorregavam. Nuno Furtado, 35 anos, filho do bairro, observou-os enquanto brincavam noite dentro. “Muita gente olha e não dá importância, já viu isto por toda a cidade. Mas para nós tem importância maior porque é a primeira”, explica ao PÚBLICO. “A primeira estrutura a aparecer no bairro.”

Estamos nas Olaias, em Lisboa, um bairro construído em terrenos municipais pela Cooperativa de Habitação Económica Portugal Novo, em 1980. O bairro integrou o projecto SAAL - Serviço Ambulatório de Apoio Local — que no final dos anos 70 procurou dar resposta às necessidades habitacionais de comunidades desfavorecidas em todo o país. Em Lisboa, nenhum dos projectos foi concluído na íntegra. A cooperativa que ergueu o bairro Portugal Novo — um projecto do arquitecto Manuel Vicente — contraiu um empréstimo junto do antigo Fundo de Fomento da Habitação para a construção, mas os sócios fizeram apenas um pagamento e a sociedade foi dissolvida. Dos três empréstimos contraídos, num total de 1,3 milhões de euros, apenas 20 mil foram pagos ao Estado em 1984.

“Não tem acontecido muita coisa ao longo destes anos no bairro, mas o que tem acontecido é sempre sem o envolvimento dos moradores”, assegura Nuno Furtado. É ele o presidente da Associação de Moradores Paz, Amizade e Cores, formada há apenas um ano. Cresceu no bairro, “sem nada, só havia casas”. As brincadeiras faziam-se na rua, “nos corredores, a bater nas casas, a inventar coisas que incomodassem os mais velhos”. E ainda hoje os miúdos brincam assim. Talvez por isso defenda que para educar uma criança é preciso envolver a escola, os pais e também a rua. “Posso falar pela minha experiência, tive esses problemas”, diz-nos.

Com a recém-criada Associação de Moradores querem desenvolver o bairro, com especial atenção para os mais novos. O sentimento geral é de abandono. E estigma social: “A Santa Casa da Misericórdia e a AMI são as únicas entidades que entram no bairro sem receio”, conta Arminda Lima, vice-presidente da Associação de Moradores. “Qualquer outra pede escolta policial.” O espaço público está deteriorado, a maior parte das habitações também, apesar dos esforços de melhoramentos feitos por alguns moradores.

Do México para o Portugal Novo

Antes de chegar a Lisboa, Daniel De León Languré quis saber ao que vinha. “Portugal Novo sem lei, violência, território sujo”, foram as ideias que reteve do que leu sobre o bairro enquanto se candidatava a um dos projectos no âmbito da Trienal de Arquitectura. Para chegar até este território, contou com a ajuda da equipa da Ensaios e Diálogos Associação (EDA), que nos últimos seis anos tem desenvolvido projectos de intervenção urbana e social sobretudo em bairros da Margem Sul de Lisboa. “No início a pesquisa foi muito aberta, procurámos locais relacionados com o boxe, interessantes visualmente ou com carências no espaço público”, explica Sofia Costa Pinto, que integra a equipa da EDA responsável pela instalação, produção e construção da estrutura. Mas foi António Brito Guterres, investigador em Estudos Urbanos, que lhes indicou o bairro Portugal Novo. Como coordenador do projecto Geração com Futuro, da Fundação Aga Khan, no bairro da Curraleira, Vale de Chelas, conhecia bem aquele território.

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Maddalena Pornaro (à esq.) integra a equipa da Ensaios e Diálogos Associação (EDA), responsável pela produção e instalação da estrutura. Vera Moutinho

Num bairro com carências evidentes no espaço público e com vontade de trabalhar a coesão entre moradores (que integra a comunidade cigana, africana, indiana), António Brito Guterres viu terreno fértil para fazer crescer a estrutura de aço. “É uma experiência com carácter experimental que pode chamar a atenção para o bairro e abrir possibilidades para futuras intervenções no espaço público”, diz ao PÚBLICO.

As relações com o poder local nem sempre são fáceis. Quando Sofia Costa Pinto, Claraluz Keiser e Maddalena Pornaro, da EDA, chegaram ao bairro para a montagem da instalação tiveram de esclarecer que não pertenciam à Junta de Freguesia. Contrataram mão-de-obra local para ajudar nas fundações da estrutura. A própria metodologia de trabalho da EDA implica o envolvimento, o diálogo próximo com os moradores: “Nós ficamos no espaço. Não é um trabalho das 9h às 18h, explica Claraluz. “Claro que os técnicos da Junta ou da Câmara não conseguem ter o mesmo tempo que nós tivemos a sorte de ter. Mas também poderia ser uma vontade política. O serviço público deveria ser repensado”, defende.

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Instalada no âmbito da Trienal de Arquitectura, a estrutura deverá, por vontade dos moradores, permanecer no local Vera Moutinho

Quando chegou ao bairro Daniel quis conhecer as pessoas. “Há problemas, conflitos, problemas de adição, desemprego. A estrutura não vai resolver isso”, explica o arquitecto de 30 anos. Mas a ambição é a de que quebre barreiras, dentro e fora do bairro. Na investigação que o levou à criação de “Caixas de Boxe”, Daniel mergulhou na realidade mexicana. No México, o segundo país com maior número de campeões de boxe da actualidade, o contexto de violência ganha enquadramento com a prática desportiva. “Se vemos duas pessoas à luta na rua distanciamo-nos. Mas se a luta acontece enquadrada pelo acto arquitectónico de um ringue, torna-se um desporto”, explica o arquitecto. “De repente queremos saber mais sobre aquelas pessoas, pomo-los numa situação de quase super-heróis. Quem são, o que fizeram para chegar ali, quais foram os contextos sociais em que cresceram”, conclui.

No Portugal Novo, procura que os efeitos sejam semelhantes. Que possa aliviar o estigma de quem olha de fora, ao mesmo tempo que robustece a coesão do bairro. “Queremos que os moradores se apropriem da estrutura, do espaço, que o façam seu. Vai depender deles: se a mantêm, se melhoram o seu uso, se a modificam”, diz Daniel. Alguns moradores já falam em colocar ali um piso sintético, mais seguro para as crianças. Arminda Lima pensou em juntar um baloiço à “caixa de boxe”. Sente-se ouvida, envolvida no projecto, nasceu algo feito para eles e com eles. “Se vem um arquitecto do México colocar aqui uma estrutura é porque afinal não estamos assim tão abandonados, não é?”

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