João Miguel Tavares e o estado do tempo

Ao veicular alguns dos argumentos dos “negacionistas” das alterações climáticas, JMT, com o seu protagonismo mediático, deu-lhes uma pequena ajuda.

Depois de o furacão Greta Thunberg ter amainado e após toda a desinspirada sociologia de gosto duvidoso que a jovem sueca gerou durante semanas, hesitei em repescar uma crónica de João Miguel Tavares (JMT) sobre o tema, mas quando é o próprio cronista a insistir e persistir, como se houvesse uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão, não é fácil ficar calado. Ao escutar o último Governo Sombra, confirmei a impressão que me deixara a leitura da sua crónica sobre a jovem Thunberg: JMT não está ainda convencido de que é o homem a provocar o aumento das concentrações atmosféricas dos gases com efeito de estufa (ouvir a partir dos 28 minutos e 23 segundos). E ao ler a sua mais recente crónica, que repisa o tópico do “negacionismo”, reparei que JMT anda a viciar-se naquele registo em que se começa por fazer uma ressalva e uma admissão de ignorância com o intuito de restaurar o crédito para se poder depois hipotecar de novo o bom senso.

O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), que defende há muitos anos a causa antropogénica, e outros painéis de especialistas que o têm feito pelo menos desde 1979, serão para JMT alarmistas, sendo os críticos destas instituições as vítimas nesta história. No Governo Sombra, que nos dá o JMT mais genuíno, o jornalista disse-nos que descrever esses críticos como “negacionistas” das alterações climáticas é um absurdo, não só por o termo vir com a carga pejorativa do negacionismo do Holocausto (estamos de acordo), mas também porque só podemos ser “negacionistas” sobre o passado, nunca em relação ao futuro. Na última crónica, JMT reforça a ideia, fazendo referência a “hipóteses científicas”, a “verdades absolutas” e ao “método científico”. Se falassem português, imagino as cinzas de Karl Popper a experimentar um sobressalto cívico de tal ordem que por momentos se organizariam no espaço tridimensional para compor um busto em que o famoso filósofo leva as mãos à cabeça.

Há muito que as Ciências e a Filosofia debatem o problema da indução que JMT parece querer instrumentalizar para lançar a dúvida paralisante. De acordo com um famoso exemplo, o facto de só vermos cisnes de uma mesma cor durante uma década não garante que não venhamos a observar um cisne de outra cor amanhã, o que impossibilita a indução e transforma as leis científicas em hipóteses perpetuamente provisórias que nunca podem ser provadas, mas apenas confirmadas ou rejeitadas. Esta foi a proposta de Popper, que se livrou da indução, substituindo-a pelo critério da falseabilidade como a qualidade essencial das teorias científicas: se não for possível imaginar resultados incompatíveis com a tese em questão, não estamos diante de uma teoria científica. O cientista tem de pôr a cabeça no cepo, ou seja, sujeitar-se ao escrutínio das previsões que se deduzem da sua teoria, que poderão ou não ser corroboradas, ao contrário de outros, como analistas freudianos, astrólogos, benfiquistas, homeopatas e flat-Earthers, que sempre encontram forma de poupar a teoria ao escrutínio, refugiando-se em sofismos, num jargão obscurantista, na subjectividade e na selecção auto-indulgente da evidência, pois eles são, respectivamente, pré-cientistas, pseudocientistas, adeptos de futebol, charlatães e alucinados.

E o que é JMT, além de benfiquista? Pelos vistos, alguém circunstancialmente tão mais popperista do que Popper que consegue desvirtuar o falibilismo do filósofo, compatível com a previsão, num cepticismo que proíbe qualquer prenúncio sobre o futuro. Naturalmente, ninguém acredita que JMT conduza assim a sua vida. Se alguém lhe dissesse que é muito arriscado viver num prédio feito de betão armado porque dois ou três séculos não chegaram ainda para reunir informação suficiente sobre a solidez desse material, duvido que o jornalista se mudasse para uma tenda. De igual modo, seria absurdo não usarmos a informação que recolhemos durante dez anos para prever a cor dos cisnes no futuro, nomeadamente se a cor do cisne simbolizar uma ameaça existencial. Mas esta discussão é muito mais simples do que o exercício difícil de destrinçar as subtis diferenças entre cépticos e falibilistas. Sendo certo que, no sentido literal de negar o que ainda não aconteceu, o epíteto de “negacionista” nunca pode ser válido para um céptico, todos sabemos que, na discussão das alterações climáticas, o “negacionismo” descreve apenas a posição de quem põe em causa a evidência que os cientistas usam para explicar o presente e prever o futuro. O comportamento será “negacionista” ou não dependendo da qualidade dessa evidência e do rigor e honestidade com que essa evidência é criticada. Não compliquemos mais o que JMT insiste em não simplificar.

Haverá quem, como JMT, prefira dedicar-se aos paralelos bem esgalhados entre a pulsão religiosa e a pulsão ambientalista nas sociedades secularizadas com o entusiasmo e leviandade de quem julga ter tido uma ideia original. Isto surpreende num profissional da informação. Porque o que o intenso debate sobre as alterações climáticas tem de fascinante para jornalistas e cientistas é o que nos diz sobre (1) a formação do consenso em ciência, (2) a formação de uma opinião pública quando o assunto tem uma complexidade inalcançável para 99,9% dos cidadãos, (3) a forma como as nossas emoções criam predisposições para acreditar ou descrer e condicionam o raciocínio subsequente, e (4) o papel do formador de opinião.

1. Nas conversas sobre o consenso científico, há sempre quem mencione o reparo de Einstein ao livro Cem críticos contra Einstein: “Porquê cem? Se eu estiver errado, um crítico seria suficiente.” No plano dos princípios, Einstein tinha razão, pois basta um estar certo para o modelo vigente soçobrar. Na prática, e apesar de notáveis triunfos individuais na história da ciência que dão depois biopics hollywoodescos, não é bem assim. Precisamente porque o sonho de qualquer cientista é mostrar que todos os outros estão errados, a comunidade científica emerge como uma estrutura conservadora e resiliente em que todos se vigiam e tende a preservar o paradigma científico em que trabalha, sendo raro que uma inconsistência apenas baste para provocar uma revolução. Em regra, é preciso que se acumule suficiente evidência científica inconsistente com a visão ortodoxa até que a mudança se precipite. Esta dinâmica do conhecimento no seio destas comunidades conservadoras compostas por revolucionários em potência foi estudada por Thomas Kuhn, cujo livro principal poucos cidadãos fora das academias terão lido até ao fim, mas onde se encontra a expressão “mudança de paradigma”, que todos utilizamos com um sentido próximo daquele por ele proposto. Tal como Popper, Kuhn não é um autor consensual, mas também as suas ossadas, experimentando um violento sobressalto cívico ao ouvir JMT, se teriam reorganizado dentro no caixão e formado a sigla “S.O.S.”.

Vivemos no paradigma de que as alterações climáticas têm uma causa antropogénica, opinião partilhada pelas mais importantes associações de cientistas do planeta. Talvez seja oportuno rebater a impressão de que o consenso científico resulta de uma sondagem de opinião entre cientistas. É verdade que o consenso se traduz em percentagens a lembrar as tragicómicas eleições de Saddam Hussein, mas o que realmente estrutura o consenso é a solidez das observações. O consenso em torno de uma teoria será tão mais forte quanto mais resistente a teoria se revelar aos sucessivos testes de stress (investigações científicas) e mais convergente for a evidência, isto é, maior o número de observações que coincidem na mesma conclusão e mais afastadas as áreas científicas que as produziram, considerando os objectos de estudo, as metodologias e até ⁠— porque no peito de um conspiracionista também bate um coração ⁠— os lobbies e interesses socioeconómicos em jogo. É essa a força do consenso científico em torno da causa antropogénica, pois a convergência da evidência vem de áreas tão distintas como a Astronomia, a Física, a Química, a Biologia, a Geologia, a Oceanografia ou a Meteorologia, bem como de abordagens empíricas e modelos matemáticos. Há uma palavra para esta convergência da evidência científica que precisa de entrar na cabeça de JMT e, já agora, também nos nossos dicionários, já traduzida: “consilience”. Ao invés da robustez dos 97% de trabalhos que sustentam a causa antropogénica para as alterações climáticas, os 3% dos trabalhos que criticam o paradigma vigente e, através de mecanismos de amplificação da mensagem bem descritos, fizeram de JMT um céptico, não formam um conjunto consistente, apresentam falhas metodológicas graves e estão assentes no mais descarado cherry picking. Felizmente, para questionar a sua credibilidade, não é preciso sequer começar a farejar quem financia alguma desta ciência, o que seria enfiar o pé no pântano da paranóia conspiracionista.

2. A transformação do consenso científico em opinião pública e decisões políticas enfrenta hoje problemas que decorrem de uma crise da autoridade. A crise manifesta-se, desde logo, na má reputação do “argumento de autoridade”, que é arrumado na colecção das falácias. Como forma de estimular o pensamento crítico, ensinamos aos nossos alunos que não se deve acreditar em algo só porque foi dito pelo professor ou algum cientista famoso. Mas eis o dirty little secret que não revelamos nessas alturas: quase todas as nossas decisões não resultam da aplicação do pensamento crítico, pois pressupõem uma confiança assente em argumentos de autoridade. Como aqui muito bem se explica, o argumento de autoridade sempre foi uma heurística imprescindível. E a necessidade de reconhecer a autoridade de instituições e indivíduos tem aumentado porque o mundo se vai tornando cada vez mais complexo, as vozes cada vez mais plurais e, se tudo dependesse da nossa própria validação crítica e empírica, perderíamos uma vida só para ter a certeza de que beber água da torneira é seguro, fumar faz mesmo mal, as vacinas são uma boa ideia, o cianeto e alguns cogumelos matam, e a teoria da Evolução é uma explicação da realidade mais precisa do que o Criacionismo. Tirando os casos em que alguns destes tópicos se transformaram em oportunidades de negócio, formas de preencher algum vazio existencial ou luta identitária, ninguém quer perder o seu tempo em ensaios microbiológicos diários à água da torneira ou a insistir em polémicas científicas anacrónicas. Naturalmente, a crise de autoridade não resulta só das redes sociais e de uma cultura em que cada um é hoje um reizinho Sol, pois os cientistas são os derradeiros responsáveis pela dificuldade crescente em replicar os dados da ciência (tema para outra conversa), mas minar a confiança nas instituições científicas com ilusórias manifestações de espírito crítico é dar a vitória a aldrabões e aos maluquinhos das teorias da conspiração, que são hoje os grandes pornógrafos do argumento de autoridade. Ao veicular alguns dos argumentos dos “negacionistas” das alterações climáticas, JMT, com o seu protagonismo mediático, deu-lhes uma pequena ajuda.

Sem cometer o erro de desafiar JMT para uma discussão técnica, porque nenhum de nós é especialista no assunto e estaríamos ambos a papaguear informação pescada com o Google e muito pouco amadurecida, foi deveras desconcertante ouvir e ler o jornalista a pôr em causa a ciência que sustenta a hipótese antropogénica, levantando dúvidas que foram há muito rebatidas e só persistem na prosa de ignorantes albafetizados. Até os críticos mais mediáticos e radicais do alarmismo sobre as alterações climáticas, como Bjorn Lomborg, admitem hoje a causa antropogénica. Os 500 “cientistas” contra o alarmismo em torno as alterações climáticas, na carta recente que enviaram às Nações Unidas, não rejeitam a causa antropogénica. E uma das raríssimas associações que não partilhava a posição esmagadoramente consensual entre os cientistas, a American Association of... [rufo de tambor]... Petroleum Geologists (!), bateu em retirada em 2010, deixando de ter posição oficial.

Se há hoje uma polémica, não é sobre a evidência das alterações climáticas (que JMT reconhece), nem sobre a sua causa (que JMT resolveu pôr em causa), mas sobre o que fazer. Há motivo para alarme? A resposta deve ser urgente, planetária e de orçamento ilimitado? São questões válidas, e daí dar alguma razão a JMT quando lembra o falhanço das previsões catastrofistas de Malthus no século XIX, a que poderia juntar as previsões catastrofistas falhadas (de 1968) que Paul Ehrlich fez quanto à explosão demográfica – mas não nos entusiasmemos os dois, pois outras perspectivas históricas funcionam contra JMT, como a documentada resistência a aceitar a associação entre o tabaco e o cancro.

Retomando, as alterações climáticas são o problema cuja solução é mais urgente ou haverá ameaças existenciais menos mobilizadoras mas ainda mais graves? Eis outra uma questão válida e, essencialmente, a linha de argumentação crítica de Lomborg, entre outros. Admitindo que urge fazer algo, quem paga? Sendo certo que entre os países actualmente mais poluentes estão nações cuja economia começou a crescer muito sobretudo nos anos recentes, como a China e a Índia, enquanto países desenvolvidos poluentes como os EUA, o Japão ou a Alemanha puderam crescer durante décadas sem restrições quanto às emissões de carbono, o que é justo fazer? Como JMT diz que percebe de politica e domina o registo da indignação, talvez lhe apeteça tentar uma resposta. Envio-lhe ainda esta curveball, que um especialista em política não terá dificuldade em despachar para fora do estádio com uma tacada: o que nos diz a história sobre o “alarmismo”, esse comportamento aparentemente tão pouco sensato? Será contraproducente ou essencial quando é preciso vencer a resistência do preconceito e dos interesses instalados? Houve “alarmismo” quando a sida apareceu nos EUA ou será que faltou “alarmismo”? Entre muitas outras, estas são as discussões sobre a mesa. A causa antropocêntrica é um assunto arrumado, tanto quanto a ciência permite arrumar a realidade.

3. JMT tenta passar por “científico” um cepticismo essencialmente reaccionário, cuja principal característica em 2019 é o anacronismo. E salta aos olhos que o fanatismo inegável de alguns ecologistas anima o jornalista a extremar também a sua posição no tom, na lógica forçada e com notável insistência multimédia, entrando voluntariamente num daqueles ciclos de retroacção positiva em que a certeza parece nascer do mero antagonismo e vai ficando cada vez mais desligada da evidência e da sensatez. Alguns dos mais brilhantes cientistas das últimas décadas ensinaram-nos que a cognição é influenciada pelas emoções e que essa influência pode ser virtuosa, mas no caso das acaloradas discussões sobre alterações climáticas as emoções só têm viciado o raciocínio. Um deles é termos assistido a exemplos caricatos da resmunguice dos mais velhos sobre as causas políticas dos mais novos, quando antes os mais velhos resmungavam por causa do desinteresse dos jovens pela política e as causas cívicas. Outro paradoxo resulta da repugnância descarada entre grupos. Temos hoje a ideologia da defesa da Terra entregue à esquerda progressista e a partidos de causa única impreparados, o que nos devia preocupar. Por mera aversão epidérmica aos progressistas e à “extrema-esquerda”, os conservadores abandonaram a causa ecologista que já foi deles e deveria continuar a ser de quem estima o princípio da precaução, tendo reduzido a discussão sobre o legado aos futuros cidadãos ao problema da sustentabilidade da segurança social, isto é, à curtíssima e interesseira distância de uma geração, porque as que virão depois não votam. JMT, com o seu tom de guerrilheiro cultural, maniqueísmo e confusões sobre o método científico, apesar de ser óbvio que se toma por uma voz ponderada, na verdade deu um contributo para perpetuar esta tragédia.

4. O que se espera então de um cronista generalista de grande mediatismo? Em rigor, nada; o cronista não deve ser condicionado e seria idiota dar a JMT uma oportunidade para encenar o número do censurado tão caro aos intelectuais e colunistas de Direita. De resto, quanto a condicionamentos, JMT só se pode queixar de si próprio. O jornalista andou distraído com outros temas durante muitos anos e só nas últimas semanas, por causa da tentação mediática criada pela jovem Greta, resolveu intervir, escrevendo então em cima do joelho, como se tivesse acabado de estrear o documentário de Al Gore An Inconvenient Truth, ou seja, imaginando-se ainda em 2006. Sabemos que JMT domina como poucos a indústria da indignação. Já o fez até dando mostras de coragem e isenção. Infelizmente, desta vez limitou-se a correr atrás dos likes do núcleo duro dos indefectíveis e a explorar a indignação amplificadora do núcleo duro antagonista. Fê-lo aplicando uma receita com provas dadas: caricaturando – ou descrevendo com rigor, pouco importa – os mais radicais e branqueando os “negacionistas”, que transformou em cientistas ostracizados e potenciais whistleblowers heróicos.

Em 2015, quando o Papa Francisco escreveu a bela encíclica “Sobre o Cuidado da Casa Comum”, nos EUA os negacionistas barafustaram. Será o Papa Francisco um ecologista fanático? Um teólogo da libertação encapotado, que surfa a causa ambiental? E de onde lhe virá a autoridade para escrever sobre Ecologia? Ao contrário das anteriores, estas são perguntas retóricas que apenas preparam o pedido seguinte cheio de alusões catitas ao catolicismo: caro JMT, após a sua tripla negação (PÚBLICO, Governo Sombra e PÚBLICO novamente), já ninguém espera que ouça o galo mencionado nos Evangelhos e, como Pedro, se ponha a chorar de arrependimento, mas peço-lhe para deixar de duvidar em vão e para não se apresentar como um mártir pela ciência. Perceba, de uma vez por todas, que o seu cepticismo quanto aos 97% de uma comunidade de milhares que trabalha com provas é um mistério insondável, em particular tendo em conta o contraste com a fé cega que parece ter nos indícios que sete magistrados do Ministério Público elencaram no despacho de acusação da Operação Marquês. Estamos todos preocupados com o Planeta, sim, mas também com a possibilidade de o estilo de opinião de JMT fazer escola e um dia os seus discípulos, entretanto crescidos e multiplicados, já só provocarem sobressaltos cívicos nas cinzas e ossadas daqueles que hoje recusam o pingue-pongue dos extremistas.

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