Vem aí um esgotamento nervoso

Desde o segundo esgotamento já passaram 17 anos. De então para cá aprendi a ler os sinais de como está na altura de parar e ninguém é feito de ferro: as gengivas inchadas, os sintomas de gripe, mas sem gripe, o corpo dorido, uma constipação repentina.

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Um não, dois. Dois esgotamentos nervosos. O primeiro durante o estágio de ensino, aos 21 anos, não sei se por pressão dos alunos, por medo dos alunos do bairro da Musgueira, a pressão do trabalho, a planificação das aulas ao segundo, as expectativas da escola, a vida a sério num repente atirada à cara, toda de uma vez só. Já não há livros para onde fugir, já não há aulas ou professores para me proteger, agora sou eu o professor, só e órfão, a fazer malabarismo com um turbilhão de emoções, as minhas, as dos alunos, as do mundo.

E eu no meio do turbilhão sobre a linha do equador a ouvir para sempre os gritos de dois exércitos ao encontro um do outro no sítio onde estou daqui por três, dois, um e o meu corpo é enrolado para a frente e para trás num inferno de carne e sangue e morte, espadas contra espadas, lanças contra lanças, corpos indiferenciados numa centrífuga permanente e de repente acordo. Todas as noites o mesmo sonho, a ansiedade de quem não quer dormir, o medo de acordar, não quero ir trabalhar, se não dormir também não acordo, o coração a mil na casa de banho a deitar tudo cá para fora antes da primeira aula. 

Quando o esgotamento chegou, tive de aprender como se põe uma mesa, ao meu ritmo, sem pressões nem medo, devagar, não está ninguém à espera, não está ninguém a ver: o garfo à esquerda, a faca, e depois a colher, à direita seguidos do guardanapo, a colher de sobremesa ao centro, por cima, a apontar para a esquerda. O médico não quis falar comigo: antidepressivos (benzodiazepinas) e comprimidos para dormir, tão pequeninos, desfazem-se na língua.

Três meses a dormir sonhos sem sonhos, tudo negro, não há libido, não há vontade, não estamos nem vivos nem mortos, andamos para a frente e pouco mais. O estágio chegou ao fim e o curso também e durante um ano não voltei a Lisboa. 

Não voltei ao médico para fazer o desmame das benzodiazepinas, deixei de as tomar de um dia para o outro e durante 48 horas vivi dentro e fora do corpo, tudo ao mesmo tempo sem ter muito bem a certeza de mim mesmo.

O segundo esgotamento aconteceu depois da morte do meu avô. Outra vez os antidepressivos e os comprimidos para dormir, a falta de libido e de tudo, um morto-vivo a não dizer coisa com coisa, a querer chegar ao fim do ano. Mas se desta vez não tive de aprender a pôr a mesa, em vez de três tive seis meses de loucura cósmica e o desmame à minha espera no fim. Já não tinha a mesma força.

Desde o segundo esgotamento já passaram 17 anos. De então para cá aprendi a ler os sinais de como está na altura de parar e ninguém é feito de ferro: as gengivas inchadas, os sintomas de gripe, mas sem gripe, o corpo dorido, uma constipação repentina. E como a vida se encarrega de nos afogar num tanque de compromissos e obrigações, começo a cancelar e a pontapear compromissos e obrigações à esquerda e à direita, doa a quem doer. E paro. 

Nunca mais tive outro esgotamento. Os sinais vão estando presentes, ano sim, ano não, e a vida não perdoa. Mas a vida não manda, mandamos nós, basta respeitar o corpo e deixar de esticar a corda como quem está à espera de ver o que acontece. E não, não há trabalho suficientemente importante para colocar em causa a nossa saúde física e mental. 

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