Governo britânico acusa Merkel de tornar “impossível” acordo sobre o “Brexit”

Fonte anónima de Downing Street citada pelos media britânicos diz que Angela Merkel exigiu a permanência da Irlanda do Norte na união aduaneira “para sempre”. Governo alemão diz que não comenta em público conversas privadas.

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As últimas propostas de Johnson foram recebidas em Bruxelas com frieza Reuters/Henry Nicholls

A apenas 23 dias do prazo final para a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), Londres e Bruxelas continuam a posicionar-se para não serem vistas como as principais culpadas de um “Brexit” desordenado. Esta terça-feira, os jornais britânicos citam uma fonte anónima de Downing Street que atira as culpas para a chanceler alemã, Angela Merkel, e diz que a obtenção de um acordo é agora “essencialmente impossível”.

Segundo a fonte, uma conversa entre Boris Johnson e Angela Merkel, na manhã desta terça-feira, selou o destino do “Brexit” e “deixou claro” que os líderes europeus “estão dispostos a destruir o Acordo de Sexta-feira Santa” – o acordo assinado em 1998 que estabelece um plano para a governação autónoma da Irlanda do Norte e estipula que não pode haver fronteiras na ilha da Irlanda, e que agora está no centro das divergências entre Londres e Bruxelas.

Nessa conversa, Merkel terá dito a Johnson que para haver acordo, a Irlanda do Norte terá de permanecer para sempre na união aduaneira da UE, uma condição inaceitável para o Governo britânico. “Se isto representar uma nova posição de base [da UE], um acordo é essencialmente impossível não apenas agora, mas para sempre”, disse a fonte de Downing Street.

O plano de Boris Johnson para uma alternativa à cláusula de salvaguarda imposta pela UE e que Londres não aceita, prevê o alinhamento regulatório da Irlanda do Norte com as regras do mercado único europeu de bens, até 2025, e o abandono de todo o Reino Unido da união aduaneira com a UE a partir de 2021. Esse cenário implica necessariamente o estabelecimento de controlos alfandegários na ilha irlandesa e a criação de uma fronteira ao longo do Mar da Irlanda, situação que o Partido Unionista da Irlanda do Norte, aliado do Governo britânico, sempre recusou mas que agora parece disposto a aceitar.

Labour contra “cinismo"

O Partido Trabalhista britânico disse que a versão da fonte anónima do Governo britânico é “uma tentativa cínica de sabotar as negociações” com a UE. 

Keir Starmer, ministro-sombra do Labour para o “Brexit”, afirmou que o primeiro-ministro “nunca assumirá a responsabilidade pelo seu próprio fracasso”, e pediu ao Parlamento britânico “que se una para impedir este Governo imprudente de forçar uma saída desordenada da UE”.

O Governo alemão não divulgou a sua versão da conversa telefónica entre Boris Johnson e Angela Merkel, e disse apenas que não faz comentários em público sobre conversas privadas.

“Não há nenhuma nova posição alemã sobre o ‘Brexit’. O objectivo de se alcançar um acordo até 31 de Outubro com base nas propostas de Johnson sempre foi irrealista mas, apesar disso, a UE sempre se mostrou disposta a negociar. Atribuir a culpa a outros pela actual situação não é jogar limpo”, disse Norbert Röttgen, porta-voz da Comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento alemão.

O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, reagiu ao anúncio do colapso das negociações, segundo a versão britânica, acusando Boris Johnson de “querer ganhar um estúpido jogo de culpas”. “Em jogo está o futuro da Europa e do Reino Unido, bem como a segurança e os interesses do nosso povo. Não quer um acordo, não quer um adiamento, não quer revogar, quo vadis?”, disse Tusk no Twitter.

Ao fim do dia, Boris Johnson recebeu em Downing Street o presidente do Parlamento Europeu, o italiano David Sasssoli, e conversou ao telefone com o primeiro-ministro da República da Irlanda, Leo Varadkar. O primeiro-ministro britânico deverá ainda deslocar-se a Dublin, na quinta ou na sexta-feira, para um último esforço negocial.

Além do prazo limite de 31 de Outubro para o “Brexit”, há um outro prazo que termina mais cedo, a 19 de Outubro, estabelecido pela Lei Benn – a lei que obriga o governo a pedir um adiamento do “Brexit” até 31 de Janeiro de 2020 se não conseguir aprovar um acordo de saída.

Vários diplomatas e altos funcionários em Bruxelas consideram que Boris Johnson está a tentar transferir a culpa para Bruxelas, no caso de ser mesmo impossível chegar-se a um acordo. O objectivo será o de lançar as bases de uma campanha para eleições legislativas antecipadas que poderão ser convocadas muito em breve no Reino Unido, diz o Politico

Vários correspondentes britânicos em Bruxelas, entre os quais Jenny Hill, da BBC, sugerem cautela a analisar a versão britânica da conversa com a chanceler alemã. “Esta linguagem e estilo de confrontação não é habitual em Merkel. A Alemanha – mais do que a maioria dos países – tem sido cautelosa a não deixar sair informações e declarações que possam inflamar a tensão entre o Reino Unido e a União Europeia.”

Para a correspondente da BBC, o governo alemão “ainda está preparado para encontrar uma solução, porque a Alemanha não quer uma saída sem acordo”.

No mesmo sentido, o correspondente do Times, Bruno Waterfield, diz que falou com vários diplomatas experientes em Bruxelas e com negociadores do “Brexit” que “não reconhecem a versão de Downing Street sobre a conversa”.

Moção de censura?

Na semana passada, o governo britânico disse que pedirá um adiamento do prazo do “Brexit” se não houver acordo até ao dia 19 de Outubro – uma medida que é obrigado a tomar na sequência da lei aprovada em Setembro pelo Parlamento britânico.

Mas, ao mesmo tempo, o primeiro-ministro britânico continua a garantir que o Reino Unido sairá da UE no dia 31 de Outubro, com ou sem acordo. Para conciliar as duas vias, Boris Johnson poderá encontrar até lá alguma lacuna na lei, ou então convencer um dos Estados-membros a opor-se ao pedido de adiamento.

Seja qual for a versão da conversa entre Johnson e Merkel, parece certo que as negociações sobre o “Brexit” chegaram a um beco sem saída. Se for mesmo esse o caso, os deputados britânicos têm agora uma decisão difícil pela frente, como salienta Mujtaba Rahman, especialista do “Brexit” no Eurasia Group: acreditar que a lei que aprovaram em Setembro é suficiente para obrigar o Governo a pedir um adiamento; ou afastar o primeiro-ministro numa moção de censura.

“O problema para os deputados”, diz o Guardian, “é que perderam a oportunidade para aprovarem uma moção de censura esta semana”.

“É tarde demais para convocar uma moção para hoje, e o Parlamento é suspenso esta noite. A nova sessão começa com o discurso da rainha na segunda-feira. Normalmente, o debate sobre o discurso dura seis dias, o que pode adiar qualquer moção de censura para a semana seguinte, ainda que seja possível encontrar uma forma de agendar uma votação para antes disso”, explica o jornal britânico.

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