Reduzidos à comunicação burocrática

Em áreas como a saúde, a fiscalidade ou os tribunais seria desejável uma comunicação clara e transparente. É raro.

Por exemplo, a arte contemporânea. É constantemente escrutinada e posta em causa. Argumenta-se que tem uma linguagem com códigos próprios e que só é compreensível entre entendidos, sendo necessárias intermediações e ferramentas da parte dos receptores para a decifrar. E o que é pior, segundo os seus censores, é que tudo é decidido por critérios provenientes de artistas, curadores, museus, galeristas ou críticos. Enfim, de gente, ou de instituições, que vivem, respiram e estudam arte.

Nada contra em questionar-se o mundo da arte. O que é curioso é que esse olhar nunca é aplicado na economia, finança, saúde ou ciência, por exemplo. Aí é pacificamente aceite que, cada área, ou cada expressão da vida social, tem os seus signos próprios. É pena. Talvez fosse útil que sectores como a finança fossem tão inquiridas como a arte. Quem sabe se dessa forma, entendendo na totalidade os mecanismos que a regem, não estivéssemos atolados na crise. Assim, continua a ser um idioma coligido entre especialistas, no limite, para não ser entendido.

Mas existem outros exemplos. Nos últimos tempos por motivos familiares tenho contactado com profissionais de saúde e constato o mesmo dilema. Às vezes parecem discorrer em círculo. Falo sobre esse universo, mas poderia ser também sobre o sistema judicial ou fiscal, domínios em que a comunicação, e a ligação o mais transparente possível entre seres humanos, deveria ser preocupação central, mas em que tudo parece feito para dificultar a correspondência clara entre diferentes sujeitos.

Existem, felizmente, excepções, mas, de forma genérica, os profissionais destas e de outras áreas têm dificuldade em sair das suas senhas de informação, dos regulamentos restritos, utilizando uma expressão encriptada ou burocrática que nem sempre é fácil de interpretar. O abismo comunicacional pode ser angustiante, até porque também há problemas de iliteracia da parte dos receptores. Estes têm de fazer a sua parte, munindo-se dos instrumentos que lhes permita aceder ao saber específico, mas a maior fatia desse estímulo tem de caber aos emissores.

O problema é que ninguém parece querer sair da sua zona de conforto, mantendo-se a todo o momento num lugar de estruturação do poder, como se nos quisessem dizer que o melhor é recorrermos ao serviço de um tradutor. No fim de contas é isso que os contabilistas ou os advogados acabam por ser.

Neste cenário é fácil individualizar responsabilidades. Apontar o dedo à funcionária das finanças que certo dia foi impaciente. Ou ao médico que não soube expor complexidade com simplicidade. Mas não é difícil vislumbrar que as formas de operar particulares são condicionadas. É a própria lógica interna dos sistemas (desintegração dos serviços, cortes orçamentais, competição extrema, precariedade) que abre espaço para a desumanidade.

Neste quadro vão rareando os oásis – as pessoas que conseguem mover-se por entre os interstícios de um sistema cada vez mais impiedoso, sendo humanas, empáticas e inteligíveis, não receando uma simetria de inteligências, em que o saber não se transmite de forma hierárquica, mas pensa-se e constrói-se com o outro. Infelizmente não parece que a norma vá sendo essa. A arte da vida, o desejo profundo de querer compreender e de ser compreendido, é cada vez mais relegado para plano secundário, atulhados que estamos na burocratização da nossa existência, com cada um a debitar uma linguagem que, em vez de produzir entendimento, apenas serve para fins de diferenciação simbólica. A mensagem é: eu estou no meu mundo e, se não consegues aceder a ele, paciência. Cada um fala para os seus pares e pouco mais. Não é só triste. É também violento.

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