À mesa com o abade de Priscos

Hermínio Costa recriou no restaurante Egoísta o mítico banquete servido ao rei D. Luís em 1887 na Póvoa de Varzim. E desta vez até incluiu o delicioso pudim.

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O jantar baseou-se no menu original, com apontamentos do próprio padre Manuel Joaquim Machado Rebelo, o abade de Priscos DR
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"Poisson à la Póvoa de Varzim" DR

“Homem de grande paladar”, como o definiam os seus conterrâneos, a figura do celebrado abade de Priscos voltou a patrocinar um memorável jantar na Póvoa de Varzim. Agora já sem as reais presenças, mas com o propósito de recriar o mítico banquete que há 132 anos, no dia 3 de Outubro de 1887, preparou para a comitiva real por altura da visita do rei D. Luís.

Um banquete cujo menu serviu como guião para levar agora à mesa do restaurante Egoísta os mesmos produtos e ingredientes, numa rigorosa execução culinária conduzida pelo chef Hermínio Costa. Consomé de perdiz, paté de caça, pescada da Póvoa, codorniz e filet de boi, mas também as trufas, o foie gras e toda a envolvência clássica e elegante da cozinha francesa. Até os vinhos das mesmas regiões de Champanhe, Madeira, Sauternes, Colares, Bordéus e Porto.

Dos dez pratos então servidos à real comitiva, Hermínio Costa optou por saltar os rotis, concentrando em cinco momentos o repasto, igualmente memorável e também com geleia de morangos e bolo bretão como sobremesas.

A diferença substancial acabou por estar no delicioso pudim de ovos criado pelo abade, que não fez parte do menu original mas foi agora servido (pois claro!) como complemento em minidoses. Curioso é que o histórico banquete de finais do século XIX é sobretudo conhecido pelo episódio da palha que o abade-cozinheiro usaria na receita do pudim.

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Foi, segundo se conta, impressionado com a qualidade e sumptuosidade do banquete que o Rei quis conhecer o cozinheiro, tendo-o questionado: “Então você serve palha ao seu Rei? Todos comem palha majestade, o segredo é saber dá-la.” O diálogo pode até nem ser rigoroso, mas foi seguramente a partir dele que se tornaram sobretudo conhecidos os extraordinários dotes culinários do abade e famoso o pudim.

E mesmo que não tenha feito parte do menu do banquete poveiro original, já por esses dias teria sido servido em Braga, onde a comitiva real esteve alojada “durante a viagem de el-Rei e da família real ao Norte do reino”.

Um périplo de várias semanas, segundo antecipava na altura a Occidente - Revista Illustrada de Portugal e do Extrangeiro. “Essa viagem que traz alvoraçadas todas as povoações por onde os augustos viajantes e reaes touristes tencionam passar, com os preparativos das festas brilhantes projectadas para a recepção.” Um percurso centrado “em Braga, e principalmente no Bom Jesus, d’onde suas magestades e altezas farão seu quartel-general”, e que incluía “a Póvoa de Varzim, a mais formosa praia de Portugal”.

Preparativos que incluíram a incumbência ao abade de Priscos de preparar todos os pormenores relacionados com o banquete poveiro, o que fez sem se poupar a esforços ou olhar a meios, segundo Fortunato da Câmara, autor do livro Os Mistérios do Abade de Priscos e do vasto trabalho de investigação e pesquisa que lhe deu origem e serviu de base a esta recriação de Hermínio Costa e do Egoísta.

Desde logo o menu original, com apontamentos do próprio padre Manuel Joaquim Machado Rebelo, o abade de Priscos, várias peças de louça e até a forma original de cobre do pudim, do século XIX, que estão na posse de seus familiares e cederam para exposição durante o jantar.

Enquadrado no ciclo “Conferências do Casino”, que durante um ano assinala o 10.º aniversário do Egoísta com a recriação 10 grandes refeições históricas em Portugal, no banquete que em finais de Setembro aconteceu Fortunato da Câmara explicou como em 1887 foi tudo mesmo à grande e à francesa.

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“Filet de boeuf” DR

E nem só porque até o menu foi redigido em francês. Oriundo de uma família de posses, de Vila Verde, o abade de Priscos era um exímio e criativo seguidor da alta cozinha francesa. Produtos, técnicas culinárias e até o requinte da decoração e apresentação.

Ele próprio executou os arranjos florais, alugou as mais de 700 peças de louças e cristais e adquiriu os produtos com que preparou o banquete para os 54 convidados. Também a conta final de 473 mil reis de despesas representou para época um verdadeiro luxo francês.  

Quanto ao jantar de 2019, o luxo foi poder saborear o consomé de perdiz cujo brilho e limpidez (clarificado com cebola e claras) ligava até com os tons dourados e de castanho brilhante do Sercial Madeira. Soberbo também o paté de caça, a que o chef associou o pain de foie (brioche) e o foie gras que foram apresentados no menu original, servidos na companhia de um grandíssimo Sauternes 2010, Châteaux Les Justices.

Já o “poisson à la Póvoa de Varzim” ofereceu um suculento e aveludado lombo de pescada, de brancura imaculada e textura tão delicada que apetecia sorver em vez de mastigar. Mais que mistério, é um escândalo que esta delícia poveira tenha praticamente desaparecido da restauração. Hermínio Costa serviu-a com alcaparras, couve-flor e um aveludado com natas e leve travo a cognac.

Para o “salmis de Cailles aux trufes de Périgord” do menu do abade, o chef fez acompanhar a codorniz por cogumelos e lâminas de trufa negra. Um jus tostado e um polvilhado com nougat a criar o efeito da pinhoada compunham o prato. Num elegante corte e empratamento, o “filet de boeuf” com um demi-glace à base de Porto tinha a companhia de minicenoura, cebola, espargo e ervilha.

Das “entremets sucrées”, compota e geleia de morango de sabor, textura, consistência e elasticidade exemplares. Mesmo não constando do menu servido em 1887, o abade de Priscos teria aplaudido os minipudins que também foram servidos em jeito de complemento. Uma espécie de encore, como acontece nos concerto que terminam em apoteose. Para seguir a receita original foram usadas formas em cobre (as dos canelé) e isso, é verdade, faz mesmo toda a diferença.

A Fugas participou no jantar a convite do Casino da Póvoa

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