Uma nova geração de directoras (e directores) de museus?

Podem os dados mudar para melhor na gestão dos museus nacionais? Admito que sim, se houver realmente vontade política em cumprir e ampliar o que dispõe a recente legislação de autonomia mitigada.

Com a aproximação da efectiva aplicação do novo enquadramento jurídico da gestão dos Museus, Palácios e Monumentos Nacionais, dependentes do Ministério da Cultura, começa a falar-se mais da figura de director (ou directora) de museu. Para alguns, ou algumas, esse é mesmo o “nó górdio” de tudo o que vier a acontecer. Maria Vlachou, gestora e comunicadora cultural, com mestrado em marketing de museus, considerou ser nas direcções dos museus que está o mal que os condena ao elitismo, dado que elas se dedicam sobretudo “ao estudo e preservação das colecções” e “não apresentam uma visão de futuro, não se vêem como fazendo parte da infra-estrutura educativa e cultural do país, não assumem um verdadeiro compromisso com toda a sociedade” (PÚBLICO, 21 de Setembro de 2019). Noutras ocasiões, acrescentou que as tradicionais formações em domínios que habilitem a saber interrogar as colecções de cada museu devem ser consideradas acessórias, sendo principal a que ela mesma protagoniza, a de gestão cultural. Importa dizer claramente dito que se trata de uma total inversão de prioridades, a que se opõem os representantes dos profissionais de museus portugueses, tanto o ICOM Portugal como a APOM (esta ainda mais vivamente).

Não admira, porém, que tal seja defendido, quando também se pretende que as colecções não são assim tão centrais nos museus e que nem se percebe por que devem estes continuar a ser considerados como “instituições permanentes”, ademais “sem fins lucrativos”: teses em que um certo “activismo” aparentemente progressista se junta ao capitalismo efectivamente predador. Não admira, em primeiro lugar, pelo que ficou dito ao abrir este texto, somado com o circunstancial favorecimento que alguma intelligentzia das causas identitárias logrou alcançar junto dos gabinetes da Cultura, no final do ciclo governativo que agora se conclui. Mas não admira sobretudo pela profunda alteração sociológica que a catástrofe do hiato geracional está a causar no mundo dos museus em Portugal. Bem vistas as coisas, não são apenas os directores (ou directoras) dos museus que são pouco inspiradores para quem agora os invectiva: são os profissionais dos museus em geral, que olimpicamente continuam a ignorar, e mostram até algum desapreço, pelas novas agendas, que lhes querem impingir à força. E, não podendo atacar todos, atacam-se aqueles que mais facilmente podem ser postos em causa, sobretudo num contexto de simpatia por parte do poder de turno.

Pelo meu lado, não tenho dúvidas em considerar que assistimos nos anos, já décadas, anteriores a uma muito nefasta degradação do estatuto da directora (ou director) de museu nacional. Alguns (e algumas), porventura muitos já, não possuem hoje cursus honorum que lhes permita serem respeitados e tomarem a palavra publicamente, com a independência de pensamento que se lhes exigiria. Sentem-se talvez compensados por exercerem lugares de chefia, ainda que recebam tão miseravelmente que certamente não é por aí que se justificam os tormentos acrescidos que aceitam sofrer. Faltam-lhes sobretudo ciência e cidadania. Vivem por isso fechados dentro de silêncios que são ensurdecedores e deixaram-se capturar pelos vícios antigos do “respeitinho é muito bonito” e do “manda quem pode, obedece quem deve”. Em suma, são pusilânimes.

Mas, dito isto, não se deve concluir que a melhor forma de garantir a qualificação, técnica e cívica, das futuras directoras (ou directores) de museus nacionais será passar a recrutá-las (ou -los) entre gestores e marketeers (uso aqui intencionalmente o termo com dois “ee”), mesmo que qualificados de “culturais”. Os saberes disciplinares da gestão e do marketing são obviamente necessários aos museus, desejavelmente também às suas direcções, mas eles são subsidiários do conhecimento interpelante das colecções de cada museu. Um museu não é um teatro ou um centro de eventos, destinado a ser entregue a programadores ou curadores. Um museu é acima de tudo um contrato intergeracional entre quem no passado produziu os bens públicos, as colecções que neles se guardam, e os sucessivos presentes, até ao nosso, que entenderam dever preservá-los, tudo na intenção de serem transmitidos ao futuro. Claro que podemos, e devemos, aproveitá-los hedonisticamente no nosso tempo, em nome dos nossos valores e para nosso gáudio. Mas temos sobretudo responsabilidade perante a imensidão dos que não têm voz, ou porque já morreram ou porque ainda estão para vir.

Importa sublinhar que a maior parte dos laços que prendem aos museus quem neles trabalha não são obtidos nos bancos das escolas, mas construídos a pulso, na vida realmente vivida. E admito por isso que seja difícil explicar a quem nunca neles trabalhou, ainda que os ame ou simplesmente veja neles um terreno de agitação social, tudo o que vai na cabeça dos profissionais dos mesmos, daqueles que neles vivem do amanhecer ao sol-pôr. Como lhes dar conta da soma de afectos, ora doces ora amargos, por que passamos quando circulamos em reservas, exposições ou laboratórios de conservação e restauro? Quando nos deliciamos a conversar com crianças ou adultos? Quando trazemos até nós comunidades inteiras de uma qualquer aldeia deste país? Ou quando simplesmente descortinamos a chispa da descoberta, no olhar deslumbrado de um qualquer visitante? Difícil ou impossível mesmo. E esta é também uma das consequências, quiçá a mais gravosa em termos sociológicos, do despovoamento de pessoal que todos os sucessivos governos têm irresponsavelmente vindo a promover.

Podem os dados mudar para melhor na gestão dos museus nacionais? Admito que sim, se houver realmente vontade política para cumprir e ampliar o que dispõe a recente legislação de autonomia mitigada. Por um lado, dignifica ela, muitíssimo, a figura do director (ou directora), que passa a constituir órgão próprio de gestão e não mera subordinação da tutela imediata, passa a responder por planos de gestão plurianuais, negociados e com orçamentação garantida, passa a poder contratar (bens e serviços, incluindo portanto pessoal)… Mas passa também a somente poder exercer três mandatos consecutivos (nove anos no total) – o que vai fatalmente ter consequências, que tanto podem ser boas como más.

Se, como se encontra expresso na legislação, for respeitado rigorosamente o critério de selecção tendo em conta “competências técnicas específicas na área da museologia ou na área patrimonial, adequadas ao desempenho de funções na unidade orgânica para que concorre” e só depois, no plano mais pessoal e curricular do que da graduação académica, a “aptidão para o exercício de funções de direcção, coordenação e de gestão”, então, poderemos talvez assistir ao regresso aos nossos museus nacionais de verdadeiras mulheres (e homens) de cultura e de ciência, com vida própria antes e depois dos respectivos mandatos directivos, sendo por isso muito mais independentes e exigentes perante todos os poderes. Invertendo-se as prioridades, e pondo à frente “aptidões” de gestão, em detrimento da capacidade interrogante sobre colecções, então ir-se-á fatalmente assistir à girândola de gente sem rosto (ou com rosto meramente temporão), que fará do posto de direcção de museu carreira de vida, saltitando de posto em posto, independentemente da tipologia dos acervos, procurando sempre manter-se na crista da onda, venerando quem possa prodigalizar benesses. Veremos, pois.

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