Defesa dos EUA dá um milhão de euros a cientista portuguesa para estudar doenças do intestino

A investigadora Salomé Pinho, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, vai analisar os dados de 600 militares e procurar biomarcadores para a doença de Crohn e para a colite ulcerosa.

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Em cima, um açúcar assinalado a castanho e, em baixo, linfócitos T a castanho, num cenário com e sem colite ulcerosa I3S/Salomé Pinho

Aproveitando o rigoroso acompanhamento que é feito aos militares norte-americanos, a equipa de investigadores liderada pela portuguesa Salomé Pinho vai estudar o desenvolvimento da doença inflamatória intestinal (DII). A cientista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto conseguiu um apoio de um milhão de euros do Departamento de Defesa dos EUA e vai procurar nos dados recolhidos nos seis anos anteriores ao diagnóstico da doença os primeiros sinais do problema em indivíduos (todos militares da Marinha) que manifestaram esta patologia. O objectivo é conseguir chegar a um diagnóstico preciso e precoce para uma prevenção e terapêutica mais eficaz.

De um lado do oceano, tínhamos a cientista Salomé Pinho, que queria procurar sinais biológicos que denunciem o desenvolvimento da doença inflamatória intestinal, que se manifesta como doença de Crohn e colite ulcerosa e que afecta milhões de pessoas no mundo. Do outro lado do oceano, o Departamento de Defesa dos EUA já sabia que contava com uma população considerável de militares norte-americanos a quem tinha sido diagnosticado este tipo de problema de saúde. Ora, tendo em conta que os militares são acompanhados regularmente com análises e outros exames médicos, é fácil concluir que a aliança entre os cientistas e os militares fazia todo o sentido. O apoio ao projecto que vem do Departamento de Defesa e ultrapassa os 1,2 milhões de euros foi aprovado recentemente e o projecto vai mesmo avançar. É uma investigação inédita.

Segundo a investigadora e líder do grupo Immunology, Cancer & GlycoMedicine do i3S, trata-se de «um estudo pioneiro que caracteriza uma população única a nível mundial (antes e após o diagnóstico da DII) que permitirá identificar biomarcadores que possibilitarão um diagnóstico precoce da doença”, como refere o comunicado de imprensa do instituto. Salomé Pinho adianta ainda que uma detecção precoce da doença pode levar a “estratégias preventivas primárias”, que eventualmente podem mesmo evitar o aparecimento da doença em indivíduos que ainda não manifestaram qualquer sintoma. Por outro lado, esta descoberta poderá permitir outro tipo de abordagem mais secundária que visa atrasar o início e progressão da doença em doentes em risco.

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A investigadora Salomé Pinho DR

A doença inflamatória intestinal (DII) representa um grupo de problemas no intestino que se manifesta predominantemente por duas patologias: a doença de Chron e a colite ulcerosa. Apesar da elevada prevalência, não se sabe ainda como se instala, se desenvolve, o que afecta e como nos afecta, ou, usando um conceito mais clínico, a sua patogénese não foi esclarecida. Sabe-se, no entanto, que há factores genéticos e também ambientais, como a modificação de algumas bactérias (microbioma) e o aumento da permeabilidade intestinal, que contribuem para desequilíbrios na regulação da imunidade intestinal, o que, por sua vez, conduz a lesões nesta zona.

A equipa liderada por Salomé Pinho vai analisar os dados e amostras de 600 militares da Marinha. Um grupo de 200 doentes com diagnóstico de colite ulcerosa, 200 com doença de Crohn e 200 indivíduos saudáveis como grupo de controlo – estamos a falar de um total de duas mil amostras. Numa grande parte dos casos será possível ter acesso a dados destes participantes que vão até seis anos antes do diagnóstico da doença. “Como eles fazem análises de rotina, todos os anos, iremos ter acesso a dados e amostras de soro numa fase pré-clínica, antes do desenvolvimento da doença, o que é algo inédito”, explica a cientista ao PÚBLICO, adiantando que esperavam há já algum tempo ter acesso a esta base de dados preciosa.

O projecto tem a duração de três anos e começará por caracterizar, com recurso a técnicas avançadas na área da glicoproteómica, as diversas amostras biológicas de militares dos EUA – ou seja, no fundo, voltar a fazer análises a cerca de duas mil amostras. É essa a tarefa que deverá permitir “identificar ‘assinaturas moleculares’” (biomarcadores) associadas ao desenvolvimento da doença e passíveis de serem identificadas numa fase ainda pré-clínica, isto é, antes da manifestação de sintomas da doença.

Mas os investigadores sabem o que procurar? Deixando as possíveis e sempre entusiasmantes surpresas, a resposta é sim. Os trabalhos anteriores já permitiram associar alguns açúcares à modificação de determinadas proteínas que parecem funcionar como agentes facilitadores de processos inflamatórios no intestino. Salomé Pinho explicou ao PÚBLICO que já se percebeu que há alguns linfócitos T (células que são soldados do nosso sistema imunitário) que estão instalados na mucosa e que apresentam uma alteração na composição dos açúcares, ou seja, um perfil de glicosificação distintivo. Essas diferenças estarão ligadas a situações hiper-reactivas e pró-inflamatórias no intestino.

Mas mais do que apenas encontrar uma assinatura molecular da doença inflamatória intestinal, a investigadora espera que o projecto permita ainda encontrar formas de separar os casos de doença mais moderada e severa. E isso, refere, também poderá ser possível através das análises serológicas e caracterização dos tais açúcares. Podemos identificar diferentes tipos de marcadores associados a diferentes prognósticos. “Saber previamente se aquela pessoa vai desenvolver uma doença severa ou moderada é excepcional porque podemos adaptar a terapêutica e melhorar a sua eficácia”, diz. Por fim, a identificação de marcadores moleculares para estas doenças vai possibilitar também formas mais simples e menos invasivas de diagnóstico. Num cenário de pleno sucesso deste projecto, em vez da rotineira colonoscopia e biópsia, seria suficiente uma análise ao sangue.

Liderada pela equipa do I3S, onde será desenvolvido quase 90 por cento do projecto, esta investigação inclui ainda elementos do centro de investigação médica da Marinha Norte-Americana e médicos especialistas do Hospital Mont Sinai em Nova Iorque. “O grupo da investigadora Salomé Pinho no i3S tem realizado estudos pioneiros na área da DII, tendo identificado alterações no perfil de expressão de carboidratos (glicanos) à superfície de linfócitos T intestinais”, adianta o comunicado da instituição, acrescentando que este trabalho já levaram à identificação de marcadores de prognóstico e de novas ferramentas terapêuticas para estes doentes.

A doença inflamatória intestinal (colite ulcerosa e doença de Crohn) é uma doença global e crónica que afecta cerca de 2,5 milhões de pessoas na Europa, e estima-se que cerca de 15 a 20 mil indivíduos sofram da doença em Portugal. O pico da idade de incidência da DC ocorre na terceira década da vida, mais precisamente entre os 15 e 30 anos, afectando sobretudo uma população jovem e activa. Não havendo uma causa conhecida, não há forma de ser prevenida.

Em Dezembro 2018, Salomé Pinho foi distinguida pela Organização Internacional para o Estudo das Doenças Inflamatórias Intestinais por causa deste projecto ainda numa fase muito preliminar, quando era apenas uma ideia com o mesmo objectivo de “identificar a causa da doença e definir estratégias preventivas”. “Esta é uma doença devastadora, porque o comprometimento social destes doentes é imenso e porque obriga a hospitalizações consecutivas. Portanto, qualquer estratégia que possa identificar os mecanismos causais vai abrir seguramente janelas para o desenvolvimento de terapias capazes de prevenir o desenvolvimento da doença.”

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