Freitas ou a radical Liberdade

Curvo-me perante a sua memória e o seu legado, esperando que, perdidos os pais fundadores da democracia, saibamos todos em conjunto encontrar iguais ou melhores referências.

Era o último que permanecia entre nós, depois da morte de Sá Carneiro, Cunhal e Soares. Um daqueles que, após a Revolução dos Cravos – uma das conquistas que mais me orgulha em ser Português –, conseguiu levar adiante um projecto político que fizesse parte de um sistema verdadeiramente democrático. Dos quatro, tinha a tarefa mais difícil por, naqueles anos, ser de direita ou de centro, se afirmar como “contra natura”, bastando relembrar o congresso no Porto.

Veio do Estado Novo, mas já no seu seio se afirmava contra o regime ditatorial. Inspirado por tantos outros regimes, sendo justo salientar o italiano, dizia-se democrata-cristão, rigorosamente ao centro, equidistante, capaz de construir pontes e herdeiro dos ensinamentos que, para o governo da “polis”, se retiram ainda hoje do Concílio Vaticano II.

Das minhas primeiras memórias políticas faz parte a sua cara estampada em cartazes que os meus pais colaram ao carro, em 1986, tinha 9 anos, naquela que foi a única vez que os vi intervir em qualquer campanha. Obviamente não sabia bem o que estava a acontecer, mas senti a tristeza deles pela perda da eleição presidencial mais renhida da nossa História e onde o episódio da Marinha Grande e o agitar do fascismo por Soares desempenharam papel não despiciendo. E que bons amigos passariam a ser!

Desde que atingi a maioridade, o meu pensamento político foi modificando, podendo agora caracterizar-me como um homem de centro-esquerda. E se refiro isto é apenas para vincar a importância vital que Freitas dava à Liberdade, a dos outros e, sobretudo, a nossa. De viver, aprender, julgar e escolher. Foi em seu nome que, mesmo tendo sido, com Amaro da Costa e Basílio Horta, um dos fundadores do então Centro Democrático Social, assumiu as suas últimas funções governativas no governo Sócrates, como independente. Há muito estava desligado do partido que fundara e que, em bom rigor, no consulado de Portas, manteve só o nome, aproximando-se de um verdadeiro populismo de direita que foi varrendo a Europa e o mundo, ora “eurocéptico”, ora “eurodesconfiado”, ora “euroacomodado”, ora “euroferveroso”. E Freitas era um indefectível amante e defensor do ideário europeu, infelizmente hoje longe do defendido por Victor Hugo.

É difícil a todos os seres humanos ver alguém como Freitas assumir a pasta de MNE num governo socialista, por estarmos acostumados a pensar por etiquetas. E o ilustre Professor de Direito Administrativo tinha a etiqueta de direita ou de centro-direita. Ainda por cima com Sócrates. Sai alegando dificuldades físicas em aliar a exigência da pasta com a idade, mas tenho para mim que terá sentido o cheiro a fim de regime. Diz que ele não mudou, mas sim os partidos e a política. Se isto é totalmente verdade quanto ao depois CDS-PP, o seu ex-CDS, é-o em parte, mas menos, quanto ao PS, o qual manteve a sua matriz, com inflexões com Guterres e outras, que nem sei qualificar, com Sócrates.

Logo lhe chamaram “cata-vento”. E Freitas bem sabia o risco que corria. Mas acreditou no que fez e isto é de admirar: entendia que a sua experiência nacional e internacional (o nosso único Presidente da AG da ONU) podia auxiliar o país numa fase em que despontava a diplomacia económica. Indispôs o PP, mas essa já não era a sua casa.

Casa sua, por direito e mérito próprios, foi sempre a docência universitária. Ainda hoje os seus manuais são de referência e já na Faculdade recordo a limpidez e clarividência do que escrevia, onde quase tudo era assim “por três ordens de razão”. Claro que no velhaco e viperino mundo da academia há quem, à boca pequena, o considere um jurista que poderia ter sido muito melhor, por se ter formado numa época em que o Direito alemão não era uma espécie de alfa e ómega de tudo, mantendo-se fiel aos ordenamentos jurídicos francês e italiano. Resistiu à “germanodependência” e não se importava com aqueles – sempre os há – que não perdoam a quem escreve direito em Direito, ou seja, de modo que se compreenda, sobretudo aqueles que nesta ciência – para mim, mais uma técnica – estão a dar os primeiros passos.

Homem de letras, foi historiador e romancista, escreveu memórias, deixou um legado inestimável nas sucessivas áreas que o apaixonavam e parecia sempre um ser apaixonado por aquilo que, em cada momento, o cativava. Não hesitava, em entrevistas públicas, a “chamar os bois pelos nomes”, algo acessível a quem tem a Liberdade por deusa e já está numa posição em que diz o que pensa e não aquilo que julga que os outros desejam ouvir sem se prejudicar.

Cala-se a voz, mas perdura o exemplo: na vida, na política e no Direito. Neste último campo, foi o pai fundador da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e ousou pensar uma instituição “fora da caixa”. Diz-se que foi cosmopolita e esse projecto provou-o. Aquele que foi o seu último grande passo académico.

Curvo-me perante a sua memória e o seu legado, esperando que, perdidos os pais fundadores da democracia, saibamos todos em conjunto encontrar iguais ou melhores referências. Como acreditava em Deus, rezo pelo seu eterno descanso.

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