Plácido Domingo demite-se da Ópera de Los Angeles e fica sem datas nem cargos nos EUA

Acusações de assédio põem fim à carreira do cantor lírico espanhol nos Estados Unidos? Domingo diz que há “uma atmosfera que compromete” a sua capacidade de actuar e exercer a direcção-geral da companhia.

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Plácido Domingo como Francesco Foscari na produção da Ópera de Los Angeles de "I due Foscari", de Verdi, em Setembro de 2012 MCT/Lawrence K. Ho

O cantor lírico espanhol Plácido Domingo demitiu-se do cargo de director-geral da Ópera de Los Angeles na sequência das acusações de assédio sexual que sobre ele pairam desde Agosto. Domingo diz que está a trabalhar para “limpar o seu nome” e, com este acto, apagou do calendário as actuações previstas que lhe restavam nos EUA, depois de todas as outras terem sido canceladas ou anuladas após o seu afastamento público voluntário.

Vinte mulheres alegam, em duas investigações da Associated Press (AP), que ao longo da sua carreira Plácido Domingo teve comportamentos inadequados que se perfilam como assédio, como apalpões, toques indesejados e convites para relações pessoais. Muitas dessas mulheres — só duas não falam sob anonimato por temerem sofrer consequências nas suas carreiras — dizem que sofreram represálias profissionais após terem rejeitado o cantor lírico, que agia a partir da sua posição de poder como tenor de renome mundial e/ou director de várias companhias.

Agora, o cantor lírico espanhol demitiu-se da Ópera de Los Angeles, que ajudou a fundar. “Enquanto continuo o meu trabalho para limpar o meu nome, decidi que é do melhor interesse da Ópera de Los Angeles que me demita como director-geral e que neste momento me retire das minhas actuações futuras”, diz Domingo num comunicado citado pela imprensa norte-americana. Ainda não há nome nem prazo para saber quem o substituirá.

Plácido Domingo ocupava o cargo de director-geral da Ópera de Los Angeles desde 2003. A Ópera de Los Angeles foi fundada em 1986 e Plácido Domingo foi um dos “catalisadores” para a sua criação, como atestava quarta-feira o crítico de música clássica Mark Swed no Los Angeles Times. “Não há desculpas que justifiquem fechar os olhos aos lapsos de Domingo. Mas isso não nos permite não reconhecer o que Domingo significou para nós”, escreve Swed sobre a dívida de gratidão da comunidade musical californiana para com o cantor que actuou com a companhia mais de três centenas de vezes, tendo-a também dirigido como maestro, e interpretou cerca de 30 papéis — a partir de 22 de Fevereiro e durante Março de 2020 participaria em Roberto Devereux, de Donizetti, mas as actuações foram canceladas. Eram as derradeiras datas agendadas, e o último cargo que ocupava, numa companhia norte-americana.

“A sua partida da Ópera de Los Angeles levanta a possibilidade de que a celebrada carreira de cinco décadas de Domingo na ópera americana pode estar a chegar ao fim” — é a estimativa do New York Times, publicada na quarta-feira quando foi conhecida a decisão de Domingo.

“Acusações recentes feitas contra mim na imprensa criaram uma atmosfera que compromete a minha capacidade de servir esta companhia que tanto amo”, diz o cantor em comunicado. A Ópera de Los Angeles reconhece o contributo de Plácido Domingo para a sua própria existência e até por ter “popularizado a ópera na consciência de Los Angeles”, cita o New York Times.

Censura audível

Plácido Domingo nega ter cometido actos impróprios, mantendo que crê que as suas interacções foram “sempre bem-vindas e consensuais” e, aos 78 anos, permanece um dos nomes mais reconhecidos do canto lírico mundial — e também continua a fazer parte dos calendários das instituições europeias do meio que programaram actuações de Domingo, como o Festival de Salzburgo ou futuras datas no La Scala de Milão e na Ópera de Viena. A ovação em Salzburgo correu mundo, primeira reacção do seu público e sector às acusações, e Mark Swed relata no Los Angeles Times como não foi tanto a sua actuação (a sua voz “soava gasta”, diz o crítico) em Luisa Miller, de Verdi, que mereceu as palmas e os “bravo!” — a assistência queria também fornecer uma censura audível ao movimento #MeToo americano”.

Nos EUA, todas as companhias e orquestras que com ele iriam trabalhar esta temporada cancelaram as suas actuações (as Óperas de Filadélfia e São Francisco fizeram-no logo após a primeira notícia da AP, e a Ópera de Dallas seguiu o mesmo caminho) e a própria Ópera de Los Angeles, onde terão tido lugar alguns dos comportamentos denunciados pelas cantoras, bailarinas e outras profissionais do meio, tinha já uma investigação em curso — que vai continuar, nas mãos de investigadores externos e a cargo da sociedade de advogados de Debra Wong Yang, antiga procuradora da Califórnia.

Além da mezzo soprano Patricia Wulf, a primeira a dar o nome às acusadoras de Domingo, Angela Turner Wilson, hoje cantora e professora de canto em Dallas, contou também a sua história de quando era uma das intérpretes de Le Cid na Ópera de Washington, com Domingo como director. Contou à AP que um dia, no camarim e antes de entrarem em palco, o tenor lhe baixou as alças do soutien e lhe agarrou violentamente o peito. “Doeu”, disse à AP. “Não foi meigo. Agarrou-me com força.” O Sindicato de Artistas Musicais dos EUA, que representa tanto cantores quanto maestros, bailarinos ou coralistas, também tem uma investigação em curso.

Já na semana passada, e na véspera da estreia da produção da Ópera Metropolitana de Nova Iorque de Macbeth, Domingo afastara-se da instituição no âmbito do mesmo caso. Quando o fez, e num comunicado, o tenor tornado barítono pelas vicissitudes da idade e das mudanças na voz, não deixava margem para dúvidas: “Estou feliz por, aos 78 anos, ter podido cantar o maravilhoso papel de protagonista de Macbeth no ensaio geral, naquela que considero a minha última actuação no palco da Met [o diminutivo de Metropolitan Opera]”. Não planeia voltar à Met, onde, nos últimos 50 anos, actuou em todas as temporadas.

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