Em defesa da justiça restaurativa: pelas vítimas de crimes, ofensores e sociedade

É completamente contrário aos valores e princípios fundamentais da justiça restaurativa o estabelecimento da obrigatoriedade de o ofensor se encontrar com a vítima e/ou com os familiares da mesma.

Foto
Melanie Wasser/Unsplash

Recentemente, o PAN apresentou, no seu programa eleitoral, uma medida que previa “instituir a obrigatoriedade de reclusos condenados por crimes violentos contra outras pessoas fazerem uma sessão semanal de reconciliação com os familiares das vítimas, mediante a aceitação destas e, caso não de trate de um homicídio, também com as próprias vítimas”. A notícia caiu como uma bomba nas redes sociais, que logo se “incendiaram”, e o PAN veio esclarecer que a “obrigatoriedade” de que falavam na medida se referia ao sistema de Justiça, o que significava que este deveria ter a responsabilidade de disponibilizar as ditas sessões nos casos referidos. Esta medida levanta algumas questões importantes sobre o tema da justiça restaurativa e, considerando que as eleições legislativas estão aí à porta, gostaria de deixar um contributo para um debate informado sobre a mesma.

Em primeiro lugar, é completamente contrário aos valores e princípios fundamentais da justiça restaurativa o estabelecimento da obrigatoriedade de o ofensor se encontrar com a vítima e/ou com os familiares da mesma. Na verdade, um dos princípios fundamentais da justiça restaurativa é o carácter voluntário da participação de todas as partes envolvidas.

Em segundo lugar, um encontro restaurativo face a face entre a vítima e o ofensor, em caso de crimes de violência doméstica ou de violação, nunca teria por objectivo promover a reabilitação do ofensor à custa do risco de novo dano para a vítima. Teria, sim, o objectivo de assegurar à vítima a oportunidade, num ambiente seguro e na medida do possível, de ver reparado o dano sofrido. A União Europeia, de resto, na chamada Directiva das Vítimas (Directiva 2012/29/EU), consagrou o direito de as vítimas de crime acederem a processos de justiça restaurativa de forma segura, em países comunitários.

E quanto ao impacto da justiça restaurativa em casos de crimes violentos? A investigação científica produzida a nível internacional indica que a participação em processos de justiça restaurativa, em caso de crimes violentos (incluindo-se aqui vítimas de ofensas sexuais), produz efeitos positivos para as vítimas ainda mais significativos do que os efeitos (também positivos) observados em vítimas de crimes não violentos.

Veja-se o exemplo da Bélgica, onde a participação de vítimas e ofensores em processos de justiça restaurativa é possível em todos os tipos de crime e em todas as fases do procedimento criminal, incluindo a fase de cumprimento de pena. E, mais uma vez, a investigação científica demonstra o efeito positivo dos processos de justiça restaurativa para vítimas de crimes violentos e não violentos.

Termino referindo os efeitos que o encontro entre vítima e ofensor pode ter no percurso de reabilitação deste. Novamente, estudos internacionais têm demonstrado que ofensores que participaram em encontros restaurativos apresentam taxas de reincidência significativamente inferiores às apresentadas por ofensores que não participaram nesse tipo de encontros. O encontro restaurativo é, muitas vezes, o primeiro momento durante o período de reclusão em que o ofensor se confronta com aquilo que fez e com o que isso significou para a sua vítima. A oportunidade que esse encontro lhe dá de reparar, na medida do possível, o dano causado pode também facilitar a reintegração social de uma pessoa que cometeu um crime, cumpriu pena e tem uma vida à sua frente.

Sugerir correcção
Comentar