A política externa pode matar-nos a todos

Não deixa de ser no mínimo estranho que a política externa esteja ausente do debate da campanha para as eleições legislativas de dia 6 de outubro.

A história é antiga, mas podia passar-se hoje. Durante a campanha para as eleições presidenciais norte-americanas de 1960, os assessores de John F. Kennedy aconselharam-no a não falar tanto de política externa pois isso não dava votos. Ficou célebre a sua resposta: “Pode não dar votos, mas pode matar-nos a todos.”

Não deixa de ser no mínimo estranho que a política externa esteja ausente do debate da campanha para as eleições legislativas de dia 6 de outubro.

Desde logo porque, embora já não estejamos na Guerra Fria, o mundo atual está cheio de perigos, alguns deles existenciais. Da competição Estados Unidos-China à proliferação nuclear; da ascensão das potências revisionistas ao ressurgimento russo na Europa de Leste, região onde estão vários países membros da NATO; da ascensão do Irão no Médio Oriente à escalada de tensão no Golfo Pérsico; dos programas nucleares iraniano e norte-coreano ao conflito entre a Índia e o Paquistão, duas potências com armas atómicas; das alterações climáticas às grandes pandemias; do terrorismo ao avanço do radicalismo islâmico, incluindo no Atlântico Sul. E podia continuar até ao fim do artigo.

Mas também devido ao facto de estarmos a assistir a mudanças na estratégia de inserção internacional de Portugal. Há um novo conceito orientador: a “plasticidade”. Ganha força uma visão de país com um “papel de mediador”, que não tem “os dons de Ares ou de Creso, mas sim os de Hermes” e que cultiva “pontes”. As principais potências mundiais parecem passar a ser tratadas quase como iguais, independentemente do seu estatuto de aliadas ou amigas, de serem democracias ou não, do seu quadro normativo, de quererem manter ou rever a ordem internacional liberal em vigor. São cultivadas as relações com a China e com a Rússia, como se viu, por exemplo, na abertura para ser de alguma forma parceiro na Belt&Road Initiative ou no “caso Skripal”.

É compreensível, mesmo desejável, que o Estado português acompanhe as profundas mudanças em curso nas relações internacionais. É preciso ter em conta a transição de poder em curso no sistema internacional. Não se pode ignorar a transferência de riqueza do mundo euro-atlântico para a Ásia, região onde estão várias das economias mais pujantes da atualidade, desde logo a chinesa, mas também a indiana, entre outras. É importante levar em linha de conta que as relações internacionais dos dias de hoje são cada vez mais relações económicas internacionais, algo que é valido para todos, mas é ainda mais saliente no caso dos países economicamente muito dependentes do exterior. É cada vez mais visível que as puras dinâmicas de poder e as relações bilaterais não são suficientes num mundo onde proliferam grandes problemas comuns que não podem ser resolvidos sem uma concertação à escala global. O grau sem precedentes de interdependência obriga a definir a política relativamente ao Estado A tendo em consideração as suas consequências no B, no C e no D.

Aceita-se, assim, a introdução de uma maior flexibilidade na política externa portuguesa, traduzida, entre outros aspetos, na atenuação da dependência do quadro de atuação oferecido pelo nosso sistema de alianças e no aprofundamento das relações com outros Estados.

Todavia, há limites para essa flexibilidade e não há lugar para a plasticidade. Uma estratégia externa tem de ter uma coluna vertebral que une as várias partes de que é composta, permitindo movimento, mas dando equilíbrio, sendo ela constituída no caso português essencialmente pelo nosso sistema de alianças. Essa é uma condição geral das relações internacionais, mas é decisiva para os Estados de pequena ou média dimensão.

Portugal é membro de três alianças essenciais – União Europeia, NATO e EUA (a nível bilateral, por via do acordo dos Açores) – e tem uma relação especial com os países de língua oficial portuguesa. Este quadrilátero constitui o quadro de referência da nossa política externa e é ele que orienta o processo de tomada de decisão nas várias questões internacionais que o país enfrenta. As alianças têm preferências normativas, regras, leis, instituições e interesses que os Estados-membros são obrigados a respeitar, ainda que não devendo ser subservientes a ninguém. Dito de forma simples, elas são como as famílias, tendo de estar todos juntos nos bons e nos maus momentos.

Dois exemplos ajudam a compreender o argumento. Tal como já acontece há vários anos, Portugal deve continuar a apostar no estreitamento dos vínculos com a Rússia, desde logo ao nível económico, sendo mesmo desejável um desanuviamento das relações entre o chamado ocidente e os russos. Porém, no “caso Skripal”, tínhamos de ter estado ao lado do nosso “mais velho” aliado – o Reino Unido –, bem como dos Estados Unidos, da NATO e da esmagadora maioria dos membros da UE (incluindo todos os ocidentais e atlânticos). Também é muito positiva a existência de uma boa relação do Estado português com a China, sendo particularmente importante o investimento chinês no nosso país. Contudo, em assuntos como a Belt&Road Initiative, os Panda Bonds ou o novo terminal do porto de Sines não podemos ignorar que vivemos num quadro de intensa competição entre Washington e Pequim e que temos uma dupla aliança com os EUA. 

Todas estas questões deviam ser discutidas durante a campanha eleitoral. É certo que podem não dar votos, podem não gerar audiências, podem não criar soundbites. Mas, como disse John F. Kennedy, a política externa pode matar-nos a todos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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