Médicos e Deco alertam para riscos da “invasão” de anúncios de aparelhos auditivos

Consumidores queixam-se de aparelhos auditivos que não conseguem usar nem devolver. Otorrinos pedem que exista mais regulação do mercado.

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População idosa é a mais afectada Paulo Pimenta

A venda de aparelhos auditivos através de anúncios, por telefone ou em casa está a motivar um número crescente de queixas à associação de defesa do consumidor Deco, na sua maioria relacionadas com dificuldades na adaptação dos dispositivos e obstáculos à devolução. Muitas das situações surgem por terem sido feitas consultas à distância, ou por não terem sido realizados os exames necessários para se encontrar um aparelho adequado ao problema de saúde, disse à agência Lusa a jurista Ingride Pereira, do gabinete de apoio ao consumidor da Deco.

Um exemplo é o de João (nome fictício) que comprou dois aparelhos auditivos no inicio de Maio, após uma consulta realizada na sua própria casa por técnicos que lhe disseram “várias vezes” que poderia devolver os dispositivos caso não se adaptasse. Depois de experimentar os dispositivos na primeira semana, João percebeu que não conseguia adaptar-se. “Provocavam-me dores de cabeça, tonturas, emitiam um grande ruído, não conseguia estar com eles mais do que cinco minutos”, conta na reclamação à Deco.

O aumento do número de reclamações motiva os otorrinos a alertar para que exista uma maior regulação deste mercado. Em declarações à agência Lusa, o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cabeça e Pescoço, Pedro Escada, defendeu que os anúncios de venda destes dispositivos deviam ser "proibidos ou pelo menos acautelados".

"Portugal é o paraíso para as casas de próteses auditivas. Qualquer pessoa pode ter uma”, disse o otorrinolaringologista que acredita que que o mercado português das próteses auditivas é pouco regulado e que a população idosa é a mais vulnerável aos esquemas.”Em determinados canais da televisão, sobretudo durante a manhã, por cada conversa que o entrevistador faz a convidados, no meio há não sei quantos anúncios de próteses auditivas e amplificadores e esses programas são vistos por pessoas de idade.”

O especialista salientou que “a maior parte das pessoas que têm perda de audição” são idosos e que “o aparelho não lhes vai restituir uma audição igual e normal". No seu entender, porém, o “problema maior” de comprar estes aparelhos não infecções, mas a pessoa não ficar satisfeita: “Uma casa de aparelhos auditivos devia ter como objectivo final [permitir ao utilizador ficar] mais funcional, conseguir comunicar melhor, mas em muitas dessas casas de próteses o objectivo é só vender, independentemente do resultado”. O médico disse que já teve casos de doentes que apareceram com um aparelho auditivo e quando observou os seus ouvidos verificou que tinham “uma rolha de cera” que depois de a ter retirado deixarem de precisar do aparelho.

Contactado pela Lusa, o Infarmed, entidade que fiscaliza o mercado de dispositivos médicos, afirmou que existem no mercado aparelhos auditivos que são amplificadores e que não se enquadram na definição de dispositivos médicos, porque não se destinam a uma finalidade médica. “Deste modo, não se trata de publicidade a um dispositivo médico, pois o produto não é um dispositivo médico, mas um amplificador, pelo que, a sua publicitação não recai nas atribuições desta autoridade”, explicou o Infarmed.

A Deco explicou que os aparelhos auditivos são diferentes dos amplificadores anunciados em jornais e na televisão, uma vez que estes ampliam o som na sua totalidade, independentemente das frequências que estejam em perda. Já os aparelhos são parametrizados para a perda específica do utilizador para corrigir a perda auditiva nas exactas frequências e intensidades.

A Lusa também contactou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que disse que “em questões de publicidade, a problemática mais evidenciada é a da realização de rastreios auditivos por este tipo de empresas” e que apenas “tem competência na eventual prestação de cuidados de saúde que seja feita por empresas que, simultaneamente, comercializem aparelhos auditivos”.

Em Agosto, o PÚBLICO noticiou que a Direcção Regional de Saúde dos Açores proibiu duas empresas de rastreios auditivos de actuarem no arquipélago quando percebeu que não tinham profissionais de saúde a fazer os rastreios.

Uso abusivo de dados

Para Pedro Escada, também ser investigado como é que algumas casas de próteses auditivas têm acesso a dados pessoais de doentes e de idosos para os abordar e vender aparelhos auditivos. “Isso é ilegal desde que apareceu o regulamento de protecção de dados, mas continuam a fazer isso com a maior das descontracções, de uma maneira escandalosa e que, sobretudo, prejudica os doentes”, advertiu.

Manuel (nome fictício) contou à agência Lusa que um comercial se dirigiu a sua casa e deixou uns aparelhos auditivos que não consegue devolver. “Não assinei nenhum contrato. Agora deparo-me com uma factura de 3.350,00 euros”, lamenta Manuel, dizendo que tem 84 anos e não está na posse de todas as suas faculdades.

Em declarações à agência Lusa, a jurista da Deco, Ingride Pereira, explicou que muitos consumidores só percebem que assinaram um contrato de crédito quando chegam à Deco e apresentam a documentação. “O consumidor identifica o problema que tem e os vendedores tentam encontrar um produto que irá resolver o seu problema, mas muitas vezes não o resolve e traz mais dores de cabeça ao consumidor por ter assinado e acreditado naquelas informações”, sublinhou.

Pedro Escada destacou a importância do médico neste processo, que acaba por ser “o maior provedor do doente”. O médico não prescreve uma prótese auditiva ao doente, diz-lhe apenas que esta o poderá ajudar e encaminha-o para uma empresa em quem confia, onde há um audiologista especializado em adaptação de próteses.

“As casas de próteses dependem em grande parte da referenciação dos médicos, pelo menos, as melhores. Depois há aquelas casas de próteses que andam a pôr papéis nos correios, telefonam às pessoas, que estão nas farmácias de tudo o que é terra de província e onde fazem exames sem uma cabine” e para quem “o médico não interessa nada”.

Por isso, defendeu Ingride Pereira, da Deco “os consumidores devem ter algum cuidado” na compra destes aparelhos através das vendas à distância, porque se trata de um “problema de saúde, de audição, em que têm de ser feitos exames”.

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