Trump em Tancos

“Quando o inverosímil não tem limites”, “a bomba atómica do ridículo” ameaça explodir. Quer se trate do Presidente dos Estados Unidos ou das instituições militares e políticas portuguesas.

A relação entre Trump e Tancos é evidentemente absurda e, no entanto, há coincidências que fazem pensar. Será que vivemos num mundo onde os códigos de conduta políticos ou éticos correm o risco de ser reduzidos a comportamentos absolutamente irresponsáveis, inverosímeis e grotescos? Como se explica uma tal deriva e que consequências devemos temer? Não será preocupante que essas coincidências sejam o reflexo de acontecimentos passados que tendem a repetir-se e amplificar-se?

O regresso do caso de Tancos em plena campanha eleitoral, colocando em xeque a instituição militar, o Governo – pelo menos um ex-ministro – e até, tortuosamente, o Presidente da República, traz para a actualidade aquele que foi porventura um dos fait-divers mais impensáveis, vergonhosos e degradantes da honra do Estado ao longo de largas décadas. Já a 14 e 21 de Outubro do ano passado, na sequência da demissão do ministro da Defesa, Azeredo Lopes, exprimi aqui a estupefacção suscitada por este caso – chamei-lhe “A bomba atómica do ridículo” –, que a consumada habilidade política de António Costa não conseguira ultrapassar apesar do golpe de asa de uma ampla remodelação governamental. Ora, as teorias conspirativas contra o Ministério Público (MP) a que o Governo parece agora agarrar-se parecem deslocadas e tardias. Se é certo que o MP aproveitou a acusação para fazer uma leitura política eventualmente abusiva, enquanto MP, da actuação do Governo – acossado pelas consequências dos incêndios e precisando, por isso, de reabilitar a sua imagem –, isso não dilui as responsabilidades do Executivo de Costa e, especialmente, de Azeredo Lopes (que chegou ao ponto patético de vangloriar-se do episódio da recuperação das armas num telefonema para um deputado socialista).

No momento em que Tancos voltava a ser notícia, o Presidente americano protagonizava um daqueles episódios burlescos que trazem a sua marca inconfundível: o telefonema para o Presidente da Ucrânia pedindo-lhe que investigasse Joe Biden, o candidato democrata por enquanto mais destacado nas sondagens das presidenciais de 2020. Aparentemente, o caso não seria tão grave como o da lua-de-mel de Trump com Putin – que o levou até a desqualificar os serviços secretos americanos para defender o líder russo, suspeito de interferência na campanha eleitoral a seu favor.

“Quando o inverosímil não tem limites”, escrevi a esse propósito em 22 de Julho de 2018. E Trump não deixou de insistir no culto do “inverosímil” sem que isso lhe prejudicasse a popularidade junto da sua base de apoio (antes pelo contrário) e as expectativas da sua reeleição. Só que há sempre um momento em que se ultrapassa a linha vermelha – e o caso do “telefonema ucraniano” revelou, porventura mais do que nunca, a desorientação e o caos em que mergulhara a Casa Branca, vulnerabilizando perigosamente Trump aos olhos dos seus seguidores como um modelo de comportamento incompatível com o exercício do poder presidencial americano. Significa isto que Trump irá ser destituído? Não, mas que o contexto favorável à sua reeleição (tendo em conta a impotência americana face às últimas crises internacionais e as nuvens que se acumulam sobre a situação económica interna) pode estar gravemente prejudicado.

E assim voltamos a Tancos. “Quando o inverosímil não tem limites”, “a bomba atómica do ridículo” ameaça explodir. Quer se trate do Presidente dos Estados Unidos ou das instituições militares e políticas portuguesas. Não é impossível imaginar um pequeno sósia de Trump enredado na comédia de Tancos. Ou um dos conspiradores de Tancos a intrigar nos bastidores mais esconsos da Casa Branca.

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