Joana Marques Vidal e o MP: exterminadores implacáveis

45 anos volvidos sobre aquela manhã que nos devolveu a Liberdade, verifica-se que o poder político e alguma opinião pública e publicada ainda lidam mal com o sistema de Justiça. O que agora nos vai sendo transmitido às pinguinhas pela comunicação social sobre Tancos é disso um exemplo perfeito.

Hipótese A: o Ministério Público (MP) – em especial Joana Marques Vidal, despeitada por não ter sido reconduzida como PGR e para vincar ainda mais a independência e autonomia do MP, talvez até fazendo um statement quanto ao modo de nomeação da PGR (eu defendo que, ao invés do que sucede hoje, a proposta devia partir do Conselho Superior do MP e nunca do Governo), cavalgando uma certa onda de sucessos contra os “fortes” e demonstrando que a corrupção é uma prioridade, ninguém estando acima da lei –, dolosamente, fez coincidir a prolação da acusação com a campanha eleitoral. Objectivo: prejudicar Costa e o PS, assim se vingando Joana e se ajustando contas com um passado recente em que os socialistas parecem lidar mal com a irritante independência dos procuradores.

Hipótese B: no caso de Tancos há um arguido em prisão preventiva e, como se sabe, o CPP prevê prazos máximos para a sua duração. Também os prevê para o encerramento da primeira fase do processo penal, de investigação, que se chama inquérito. Embora, como vimos na operação Marquês, o entendimento generalizado é que tais prazos são meramente indicativos, ou seja, se ultrapassados, não existe qualquer invalidade processual nem disciplinar, excepto se o atraso não for fundado em circunstâncias concretas que tal determinaram. Assim, como os tempos da Justiça não são os tempos da política, e como o MP não é um fantoche de nenhum Governo, mas um órgão independente e autónomo do Estado, ou seja, de todo o Povo, isto é, de todos os cidadãos e residentes em Portugal, nem sequer deveria ser ponderado qualquer melindre político.

Entre estas duas hipóteses, outras têm sido aventadas. Vamos aos factos: o MP viu o seu Estatuto ser revisto, assim como a magistratura judicial, em vários pontos que não apenas o remuneratório, em geral adaptando a legislação a outra que entretanto havia entrado em vigor, como a organização e mapa judiciários, e reforçando a independência e autonomia de juízes e procuradores. Quanto aos salários, o facto de um auditor de justiça – quem passa num duríssimo concurso público de acesso ao CEJ e se vai preparar teórica e praticamente, num curso muito exigente, para ser juiz ou procurador – ganhar mais que um professor do ensino não superior no topo de carreira, como Rio salientou, com todo o respeito pelos professores, é um não-exemplo, por estarmos a falar de funções públicas completamente distintas. Os tribunais no seu conjunto são um dos nossos órgãos de soberania e o MP, como magistratura hierarquizada, mas com paralelismo em relação à judicial, desempenha uma função central na acção penal, na representação de interesses difusos como o agora tão sexy ambiente, os mais desprotegidos, como menores, maiores acompanhados, todos os entes do Estado, entre outras funções.

Ora, é essencial que quem ocupa um dos poderes centrais num Estado de Direito tenha condições remuneratórias condignas, não somente para atrair os melhores para tal carreira (há advogados que podem ganhar muito mais, embora a maioria mal ganhe para custear as despesas fixas de um escritório), mas também, porque se trata de mulheres e homens como nós, a fim de prevenir eventuais “tentações”. Tendo sido com o actual Governo e a actual maioria que se formou na AR que estas condições foram melhoradas, seria um tiro no pé que o MP quisesse castigar o Governo e o PS. Os procuradores são, como a generalidade das pessoas, seres racionais, e julgo que isto todos nós – excepto os que têm ódios de estimação nas magistraturas – podemos conceder. Por outro lado, a hipótese A implicaria que Marques Vidal tivesse um ascendente muito perigoso e ilegal sobre Lucília Gago, a actual PGR, ou sobre quem conduz o inquérito. Não consta que Gago, apesar do apelido, tenha dificuldades em dar ordens de serviço ou que seja Joana a governar pela voz de Gago.

Donde, por muito desagradável que seja para alguns políticos, por muito que o que se vai sabendo possa colocar dúvidas (que ainda são apenas “indícios suficientes”) sobre Azeredo Lopes, Costa e outros intervenientes políticos, o MP apenas fez o seu trabalho. E isto não é ingenuidade. O contrário seria uma absoluta politização do MP, seria acreditar que as mulheres e homens que aí trabalham fazem todos parte de um complot contra o Governo e que não são um órgão do Estado, mas uma espécie de associação criminosa. E tal é tão dantesco, contra as máximas da experiência e o mais simples bom-senso, que não pode ser verdade.

Voltando às hipóteses acima, em campanha eleitoral, é evidente que cada um vai optar pela que mais lhe convém. É também certo que o chamuscar do PR vai afectar e muito as relações entre Costa e Marcelo, o que faz antever um mais animado segundo mandato.

É muito bonito dizer-se “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”. Recorda-se uma frase bíblica, uma máxima de governação que não agradaria a Maquiavel, mas quando a questão nos pode prejudicar directamente, a Justiça é uma grande chatice, uma cambada de sindicalistas que vivem noite e dia a matutar em como deitar-nos abaixo.

E com esta cortina de fogo, não se afirma o essencial: cada um dos arguidos é inocente, por estarmos ainda muito longe do trânsito em julgado de qualquer decisão; devíamos preocupar-nos com quem e em que circunstâncias furtou as armas, dando das Forças Armadas a imagem de um soldado sem botas; quanto ao que se acha na acusação, deixemos o processo funcionar nos seus trâmites previstos no CPP, agora que é a vez de as defesas decidirem se requerem a abertura da instrução – o que é o mais provável – ou se deixam o processo seguir para julgamento.

Diz-se que “com a tristeza dos outros podemos nós bem” ou, em versão mais prosaica e que me agrada mais, “pimenta no c* dos outros é refresco”. Na mesma linha, “quem tem c*, tem medo”. E, pelos vistos, há muita gente apavorada.

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