Dica para ser feliz: sair da cama sem ter de pensar como o vai fazer. E respirar.

Às vezes a normalidade é mesmo a melhor coisa que nos pode acontecer.

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Foi o novo ritual para sair da cama de manhã que mais depressa me mostrou o quão fácil é deixar de continuar a contar com a felicidade do normal Sasha Freemind/Unsplash

Sabe aquela sensação de acordar, levantar-se normalmente e respirar sem sequer se lembrar que o está a fazer? Aquela coisa normal, rotineira, que não o obriga a qualquer esforço de pensamento? Aquilo que a maior parte de nós faz quase todos os dias sem se aperceber? Não? Se calhar não tinha parado para pensar nisso, o que é bom, porque a maravilha do acordar para mais um dia sem ter de pensar como se vai levantar da cama, caminhar até ao quarto de banho e tratar do pequeno-almoço (só para descrever a primeira meia hora de um dia comum) é essa mesmo: acontecer sem esforço, sem que tenhamos de pensar nisso.

Eu às vezes dou por mim a apreciar verdadeiramente esses dias cheios de normalidade. Sobretudo quando estou com gripe. Nem precisa de ser gripe, vá. Basta andar uns dias seguidos com o nariz entupido, a consumir pacotes insanos de lenços de papel e com a cabeça pesada por não conseguir respirar em condições. Por mais de uma vez, nessas alturas, dou por mim a pensar: estar saudável é bem mais fácil, não dou o devido valor aos dias todos em que respirar não é um tormento.

Reparem que não é preciso padecer de qualquer doença grave. Não estou a falar sequer da minha amiga que há dois anos apanhou uma infecção hospitalar depois de uma cirurgia e nunca mais teve um dia sem dores. Um único. Já houve mais cirurgias, há tratamentos todas as semanas no hospital, diversos especialistas ouvidos e no final sempre o mesmo desalento: as coisas podem melhorar, mas nunca ficar bem. Dois anos inteiros com diferentes níveis de dor – nunca pouca dor; muita dor ou pior ainda: é mais por aí. Ela é incrivelmente corajosa para lidar com isto todos os dias. Eu não consigo imaginar como será e, como escrevia no início do parágrafo, nem é disso que estou a falar.

Nas últimas semanas fui apresentada a uma nova variante da sensação quem-me-dera-não-ter-o-nariz-entupido-e-ser-uma-pessoa-normal-outra-vez. Começou numa quarta-feira ao acordar. Voltei-me na cama e senti uma tontura. Coisa estranha, pensei. Ainda estava a acordar, pelo que me deixei ficar mais um pouco deitada. O pior foi quando me sentei, pronta para me levantar. Senti uma tontura tão forte (mas ainda sem perceber o que estava a acontecer) que a sensação que tive foi que o colchão em que apoiava a mão tinha acabado de se afundar. Cheguei a pensar, “partiu-se o estrado da cama e estou a cair”, antes de perceber que tudo na cama estava normal. Eu é que não.

Depois de tentar ignorar o assunto acabei por ir ao médico, porque as tonturas, um pouco mais leves, voltaram ao longo do dia. E foi então que a médica de urgência na unidade de saúde familiar me disse que deviam ser os cristais. Parece uma coisa bonita – ter cristais nos ouvidos. Só que não. Porque a única vez que ouvimos falar deles é quando, aparentemente, saem do sítio e nos desequilibram a existência. Nas semanas que se seguiram – com uma ida ao especialista, que confirmou o diagnóstico inicial – adaptei-me a um mundo em que me sentia sempre zonza e com um aperto na cabeça, como se ela estivesse em permanência enfiada num daqueles tornos que existiam nas aulas de Madeiras da escola preparatória.

Também aprendi coisas novas como não me deitar sobre o lado direito no sofá, porque isso significava o aparecimento de uma tontura violenta. Mas foi o novo ritual para sair da cama de manhã que mais depressa me mostrou o quão fácil é deixar de continuar a contar com a felicidade do normal. A coisa já não se faz com o habitual erguer do corpo, pés no chão e, pronto, estou de pé. Nada disso. Nas últimas semanas sair da cama é um ritual em quatro passos: erguer parte do tronco e esperar que a tontura passe; sentar-me na cama e esperar que a tontura passe; colocar os pés no chão, ainda sentada e aguardar uns segundos a ver se não surge mais uma tontura; e, finalmente, ficar em pé.

Nada disto é grave. Só é chato. Tenho ouvido muito isso. “Xiii, isso dos cristais é muito chato.” É mesmo. E mal posso esperar que passe. Aguardo ansiosa pela felicidade de me levantar da cama sem pensar que o estou a fazer ou como o estou a fazer. Até lá, respiro. Não tenho o nariz entupido. Não preciso de me lembrar que tenho de expirar e inspirar. Só acontece, sem que eu pense no assunto. E isso é extraordinário.

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