Quando o paraíso turístico dos Açores se torna um pesadelo para os estudantes

Beatriz, Valéria e César são alunos da Universidade dos Açores que tiveram dificuldades em encontrar alojamento: a residência universitária já “não dá resposta”, as casas “escasseiam” e as que existem têm preços inflacionados. Em Ponta Delgada, a situação do alojamento para universitários está “incontrolável” desde que o turismo cresceu na ilha.

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César Moura, de 18 anos, mudou-se de Santa Maria para Ponta Delgada para tirar Turismo. Rui Pedro Paiva

Beatriz Silva tem 22 anos e considera-se uma sortuda por ter conseguido um quarto perto do pólo de Ponta Delgada da Universidade dos Açores (UAc) a 195 euros, partilhado com mais três estudantes. Viajou da ilha Terceira, Praia da Vitória, para estudar Informática, Redes e Multimédia. Inicialmente, pensava que ia viver numa casa onde dois amigos da sua cidade já estavam, mas o senhorio “expulsou-os” de lá. “Não estavam a render”, conta ao P3. Começou, então, a busca por alojamento — em Junho último, três meses antes do início do ano lectivo — e encontrou “muitos anúncios sem fotos e sem preços, muitos números que não atendiam e quartos já reservados”. “Foi muito complicado”, recorda. Os preços que encontrou iam dos 200 aos 300 euros por quarto, sempre em casas partilhadas. “Tenho continuado a acompanhar [as ofertas] e agora mais perto das aulas os preços estão cada vez mais caros”, aponta. Até que encontrou o tal “achado” pelo qual se decidiu.

Mas nem tudo foi perfeito e quando chegou a São Miguel teve uma surpresa: nas fotografias que vira no anúncio, na parte da frente da casa aparecia uma garagem; quando chegou, em vez de uma garagem, estavam uma porta e uma janela. “Afinal, é um alojamento local”, explica Beatriz, que, num tom bem-disposto e resignado, assume ter sido “enganada”. Além da casa ter acesso directo à garagem, como o quarto é em madeira costuma “ouvir as conversas dos turistas” na habitação ao lado. “Eu estou ali a viver com pessoas de alojamento local.” E sem ter acesso a uma factura emitida pelo senhorio, que “não apresenta qualquer justificação” para tal. “O meu pai quer fazer queixa nas finanças”, diz.

A juntar a isto, Beatriz tem uma lista restrita de 20 regras a cumprir, devidamente expostas na cozinha: “Nada de festas, jantares ou almoços”, “Ter cuidado com o barulho de manhã na cozinha”, “Todas as divisões devem ser limpas pelo menos uma vez por semana”. “Nem os meus pais podem vir cá se vieram passar uns dias a São Miguel”, lamenta-se

A Universidade dos Açores é uma das mais pequenas do país, com cerca de 2600 alunos, mas uma das maiores em extensão. Está dividida em três pólos, em três ilhas diferentes: Ponta Delgada (São Miguel), Angra do Heroísmo (Terceira) e Horta (Faial). Entre o primeiro e o último, distam mais de 270 quilómetros. É em Ponta Delgada — onde está o campus maior, com 2100 alunos e a maioria da oferta lectiva) — que se sentem as maiores dificuldades ao nível do alojamento e, apesar de tudo, percebe-se o porquê de Beatriz se considerar “sortuda”.

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Beatriz Silva Rui Pedro Paiva

“O turismo alterou toda a dinâmica do alojamento”

Em Ponta Delgada, o preço médio por quarto “está acima dos 200 euros”, garante Marcos Bicho, presidente da Associação Académica da Universidade dos Açores (AAUA). Na plataforma criada para “facilitar o acesso ao alojamento”, os preços por quarto vão desde os “185 aos 300 e tal euros”. “O turismo alterou toda a dinâmica do alojamento em Ponta Delgada”, explica o dirigente associativo, assinalando “que a maior procura a nível turístico fez com que as habitações que eram arrendadas a universitários se tornassem escassas”. As que existem estão “muito mais caras”. A residência universitária, por sua vez, “já não dá resposta, está sempre cheia”.

Informações que parecem ser confirmadas pela directora dos Serviços de Acção Social Escolar (SASE) da UAc. “O ano lectivo ainda não começou e já temos uma lista de espera para a residência de Ponta Delgada”, revela Ana Gouveia. A Universidade dispõe de 350 camas, 258 em Ponta Delgada. Os SASE não consideram a residência como lotada porque “existem 60 vagas destinadas aos alunos bolseiros das segunda e terceira fases, que têm prioridade”. Mas esperam dificuldades: “Estou preocupada porque, neste momento, já não tenho alojamento para alunos Erasmus”. No ano lectivo de 2018/2019, com a taxa de ocupação próxima dos 100%, “não foi fácil dar resposta”. E deixa o apelo: “Sentimos uma diferença muito grande desde que o turismo começou a crescer, com uma muito maior procura. É preciso que as entidades competentes façam alguma coisa porque, se a tendência se mantiver, vamos ter a necessidade de mais camas.”

Reclamações de “senhorios que não passam recibo” e que, já com o ano a decorrer, “ameaçam expulsar o aluno para transformar o quarto em alojamento local” são algumas das queixas mais comuns ouvidas por Daniela Faria, vice-presidente da AAUA para a Acção Social. Também há proprietários “que obrigam os estudantes a desocupar o quarto durante o Verão” para poderem fazer alojamento local da habitação até ao regresso dos alunos, “que continuam a pagar a renda” durante esse período para “assegurarem o quarto”. “situação está incontrolável”, resume.

Apesar disso, Susana Mira Leal, vice-reitora da instituição, acredita que “o alojamento não é um entrave para quem quiser vir estudar para os Açores” — até porque “tem sido possível ir satisfazendo a procura dos alunos”. A responsável pela Comunicação, Relações Externas e Internacionalização refere que algumas das dificuldades sentidas se devem ao “aumento para 231 alunos em programas de mobilidade” face aos 79 de há quatro anos. Ainda assim, classifica o alojamento como “uma preocupação da equipa reitoral” e defende que a “universidade não pode fazer tudo sozinha”. “O trabalho tem de ser feito com as autarquias e Governo Regional para encontrarmos soluções, quer de residência propriamente dita, quer de tornar visível a oferta ao nível dos privados”, afirma.

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A Universidade dos Açores é uma das mais pequenas do país, com cerca de 2600 alunos, mas uma das maiores em extensão Rui Pedro Paiva

“É mesmo não ter a noção da realidade”

Os primeiros tempos de Valéria Sousa, 20 anos, em São Miguel, não foram fáceis. Em 2018, ainda em Angra do Heroísmo e mesmo antes de saber que tinha entrado em Gestão, começou a procurar alojamento. Passados meses, “não estava a conseguir encontrar nada”. “Vi quartos que diziam estar a cinco minutos da universidade e depois eram a 20, vi quartos partilhados a 200 euros e habitações com quatro quartos a 300 euros cada um”, conta. Quando finalmente conseguiu arranjar, as condições não eram as melhores. Pagou 200 euros para viver num sótão, juntamente com mais duas pessoas. “O tecto era inclinado e eu mal conseguia abrir o guarda-fatos porque não havia espaço”, revela, afirmando que “era um quarto divido por três pessoas”. Conseguiu ficar apenas pouco mais de um mês e agora “está bem melhor”: “Foi preciso estar sempre em cima, mas consegui um quarto numa casa partilhada por 200 euros, mais despesas.”

Um pouco mais paga César Moura, de 18 anos. Mudou-se de Santa Maria para Ponta Delgada para tirar Turismo. Ainda na ilha natal, decidiu juntar-se a um amigo, que também ia estudar para São Miguel, na procura de casa: “Já sabia que as coisas estavam complicadas, partilhando habitação ia sair mais em conta”. Foi “bastante difícil arranjar renda a um preço acessível”, apesar de ter iniciado a procura há meses. Conseguiu uma habitação para três pessoas por 700 euros, sem despesas, o “que considera mesmo muito, muito, bom para aquilo que se encontra”.

Nem Valéria nem César conheciam São Miguel até terem ingressado na UAc. Apesar de deslocados, não gozam do estatuto: como são açorianos, a Direcção-Geral do Ensino Superior não os considera estudantes deslocados. “É mesmo não ter a noção da realidade”, critica a AAUA. As viagens inter-ilhas, que no Inverno apenas podem ser realizadas de avião, “têm um tecto máximo de 90 euros, mas custam em média 120”, refere Marcos Bicho. “Temos um problema de acessibilidades muito próprio da nossa realidade: a mobilidade dentro da mesma ilha já é muito difícil, quanto mais se for para outra ilha”, critica.

Daí ser “difícil” arranjar dados quanto ao número de estudantes deslocados. Para a AAUA, e considerando os alunos de outras ilhas, “devem corresponder a metade do número total de estudantes”. “Depois, na hora de tomar decisões, como os números da DGES estão martelados, parece que existem camas suficientes”. Camas que vão faltando em Ponta Delgada — pelo menos as destinadas a estudantes.

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