Um teatro político que faz soar as vozes da imigração

Convidada da segunda conferência da European Association for the Study of Theater and Performance, Shermin Langhoff passou por Lisboa e apresentou o seu trabalho fortemente activista na direcção do berlinense Maxim Gorki Theater.

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cortesia tibor bozi

Quando Shermin Langhoff iniciou o seu mandato à frente do Maxim Gorki Theater, em 2013, convocou trinta artistas para “iluminarem” as imediações da sala, apontando o foco para os vários edifícios e episódios históricos que rodeiam o teatro berlinense. Em vez de concentrar os olhares no interior, pedia que registassem a proximidade do lugar (em frente da sala) de onde saíram os soldados alemães, em 1914, enviados para combater na I Guerra Mundial, para a vizinhança do Museu Histórico Alemão ou da Universidade de Humboldt, símbolo da iluminação científica mas que assistiu também à queima de 20 mil livros levada a cabo pelos nazis.​ Para Shermin Langhoff, na verdade, tanto artes como ciências deixaram-se manchar e carregam ainda um sentimento de culpa em relação aos acontecimentos da II Guerra Mundial e do Holocausto. Mas foi também no interior do Gorki que se reuniu durante nove meses de 1848 a Assembleia Nacional Prussiana, 19 anos depois de Felix Mendelssohn-Bartholdy ter dirigido A Paixão segundo São Mateus, de Bach, recuperando uma obra que não era tocada há décadas na então designada Singakademie — e iniciando, diz-se, uma reapreciação da obra do compositor alemão.

Esse primeiro gesto da direcção de Langhoff, que construíra uma extraordinária reputação em torno de um conceito de “teatro pós-migrante” na década anterior, resumia a sua claríssima opção por fazer do Maxim Gorki um teatro que queria “enfrentar as suas histórias e os seus passados”, sem fugir às contradições e a temáticas mais sensíveis ou polémicas. “Os edifícios, as suas paredes e os seus tijolos”, diz Langhoff ao PÚBLICO, “estão a contar-nos histórias; mas também a esconder-nos histórias, porque falta falar daqueles que morreram, aqueles que viram o seu sangue derramado e foram esquecidos, bem como dos migrantes, dos novos berlinenses e alemães, aqueles que chegaram nos últimos 75 anos [a partir de 1944] e continuam a não estar representados. Não como protagonistas, não com as suas histórias, não como público.”

É, por isso, fácil compreender o porquê de Shermin Langhoff passar por Lisboa enquanto convidada principal da segunda conferência da European Association for the Study of Theater and Performance, reunida entre 23 e 25 de Setembro na Universidade de Lisboa e no Teatro Nacional D. Maria II, com organização do Centro de Estudos Teatrais, encontrando-se sob o chapéu-de-chuva temático “Memórias partilhadas”. E se Langhoff (nascida na Turquia, criada pelos avós perto da ilha de Lesbos e emigrada para a Alemanha aos nove anos) escreve que “as memórias não são já memória, nem as histórias são já História”, é esse processo de reclamar memórias e histórias para um discurso oficial que defende para o seu teatro. “Um teatro”, diz ainda ao PÚBLICO, “é também um processo de construção de identidade através das histórias que escolhemos contar. E foi nestas histórias em falta nos últimos 75 anos alemães em que pensei desde o início, porque enquanto sala somos parte da sociedade e participantes activos na política.”

Essa participação activa subscrita por Shermin Langhoff teve um momento capital em 2018, durante as celebrações de dois momentos históricos: o 70.º aniversário da Grundgesetz (Constituição) alemã e o 3 de Outubro, data da reunificação das duas Alemanhas. Desde a Queda do Muro, em 1989, lembra Langhoff, a Alemanha tem assistido a várias manifestações de racismo contra comunidades imigrantes e a uma crescente reaparição de movimentos de extrema-direita. Daí que o diálogo com a actriz e encenadora Marta Górnicka tenha levado à montagem de um espectáculo junto à histórica Porta de Brandemburgo, ao longo do qual “50 berlinenses que não eram aqueles que os fascistas quereriam ver como berlinenses, pessoas com deficiências, brancos e negros, pequenos e altos, gordos e magros, loiros e morenos, todos os géneros imagináveis”, aplicavam um “teste de stress” à Constituição. “Será que também é feita para nós?”, perguntavam repetidas vezes. “Era um projecto muito crítico e que reclamava o parágrafo que diz respeito ao direito à resistência, caso a Constituição seja alvo do poder.”

Da política ao teatro

“Acredito que não tenhamos de ser uma árvore para pensar numa árvore”, diz-nos Shermin Langhoff. Na sua cabeça está a ideia de que o teatro que defende e põe em prática não é necessariamente um eco da sua biografia enquanto mulher nascida na Turquia, descendente de uma família em que há histórias de fuga — desde o genocídio circassiano no Cáucaso, em 1864, às guerras que alastraram e pegaram fogo ao século XX — e uma experiência pessoal com o racismo vivida na pele na República Federal Alemã, onde chegou aos nove anos. É, pois, inevitável olhar para a sua programação como um eco desses vários antecedentes. “Mas estas motivações e esta curiosidade pelos assuntos com que lido”, defende, “têm muito que ver com a minha atitude e não tanto com a minha origem. Agora, esta atitude tem obviamente que ver com a minha origem.”

Essa atitude começou por encontrar um escape na actividade política, entre os 14 e os 18 anos, quando foi “membro de um partido comunista ilegal”. Seriam as leituras sobre o Holocausto e sobre o genocídio arménio “o ponto crucial” para começar a procurar nas artes uma forma de resistência e de apontar o dedo ao capitalismo, ao patriarcado e ao colonialismo. Depois de ter trabalhado com o cineasta alemão (de origem turca) Fatih Akin, começou a programar o espaço HAU, onde deu palco a novas vozes que levavam já para cena reflexões sobre a imigração e a pertença. Foi esse trabalho que lhe valeu reconhecimento internacional e a atribuição do Prémio Kairos, em 2011. Para o Maxim Gorki, levou a mesma atitude de trabalhar com a imaginação para criar empatia com os outros, os habitualmente excluídos. A mesma atitude que implica “estar sempre à procura dos momentos dolorosos e das possibilidades de encetar diálogos”. Para que as histórias possam levantar-se e exigir o seu lugar na História, em vez de serem continuamente espezinhadas e sufocadas no silêncio.

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