A sombra do “inigualável” Jardim

A sombra de Jardim continua a pairar num ambiente político consumido pelo tempo, como se a Madeira se mantivesse prisioneira do “inigualável” que dela fez o seu pequeno reino do “quero, posso e mando”.

A Madeira foi domingo às urnas para decidir entre a continuação do interminável reinado do PSD ou uma “mudança” inédita protagonizada pelo PS. Apesar de tudo, parecia mais provável a reedição do primeiro cenário, embora sem maioria absoluta laranja – e foi isso o que aconteceu. Mas uma das surpresas mais curiosas da campanha eleitoral seriam as declarações ao Expresso de Paulo Cafôfo, o candidato socialista à presidência do Governo regional, qualificando Alberto João Jardim de “personalidade inigualável”. Não, não era ironia, como Cafôfo se apressou a esclarecer, era mesmo um elogio sincero, tendo em conta a importância “inigualável” de Jardim na história da Madeira como pai da autonomia (apesar de manchada por agressivos laivos separatistas) e do desenvolvimento regional (embora rapidamente sacrificado ao império dos novos ricos do betão). Ou seja: esquecendo o preço que a democracia, o civismo, a cultura, o equilíbrio ambiental, entre tantas coisas mais, tiveram de pagar como tributo ao culto do supremo chefe Jardim.

Mas que o principal candidato à “mudança” na Madeira tivesse escolhido como exemplo inspirador o homem que governou o arquipélago com um intolerante estilo ditatorial, populista, megalómano e despesista, durante quase quatro décadas, não constitui verdadeiramente uma surpresa. É a prova provada de que a Madeira continua refém do jardinismo, mesmo quando se trata de ensaiar uma qualquer “mudança”. Cafôfo terá pretendido capitalizar a seu favor o voto da nostalgia jardinista que se teria desencantado com a governação de Miguel Albuquerque, mas sem ter em conta os últimos desenvolvimentos da relação de Jardim com o seu sucessor.

De facto, depois de um longo período de zanga e ressentimento que levou inclusivamente Jardim a criar um blogue para zurzir forte e feio no Governo de Albuquerque, aconteceu aquilo que pareceu ser um inesperado milagre de reconciliação. O “inigualável" não só passou a aparecer de novo nas festas do PSD como se tornou uma presença exuberante na campanha eleitoral ao lado do “herdeiro” a quem votara um feroz ódio de estimação.

Afinal, nem Jardim conseguiu resistir a um afastamento demasiado prolongado do palco laranja nem Albuquerque – precocemente desgastado pelas canseiras do poder – pôde permitir-se dispensar a companhia incómoda e ofuscante do seu antecessor. Restava apenas saber até quando esta convivência iria perdurar de modo pacífico – o que parecia problemático atendendo ao insaciável apetite de Jardim pelo poder e à conhecida propensão para recusar papéis secundários, apesar da sua idade já avançada. Não foi preciso esperar muito. Logo na noite eleitoral, Jardim manifestou vivamente a sua insatisfação com o resultado do PSD, atribuindo-o aos dois primeiros anos “desastrosos” da governação de Albuquerque (por sinal, aqueles onde se viveu na Madeira um clima politicamente mais respirável). Mas isso aconteceu antes do próprio Alberto João ter reentrado em cena, tentando “deitar a mão” para impedir um eventual desastre eleitoral. Se não fosse ele, teria sido bem pior…

Apesar de ter falhado a “mudança”, o PS obteve ainda assim um resultado histórico, beneficiando da queda da abstenção mas também do desaparecimento político de alguns dos seus aliados na coligação da Câmara do Funchal, exceptuando o Juntos Pelo Povo, com três deputados – o mesmo número obtido pelo CDS. CDS que, no entanto, não deixou de celebrar pateticamente esses gloriosos três por cento como a confirmação do triunfo “do centro e da direita” (só porque iriam permitir a Albuquerque salvar por um triz a maioria absoluta perdida pelo PSD?). Entretanto, para além de tudo isto, a sombra de Jardim continua a pairar num ambiente político consumido pelo tempo, como se a Madeira se mantivesse prisioneira do “inigualável” que dela fez o seu pequeno reino do “quero, posso e mando”.   

   

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