À espera de Gilead

PORTUGAL, 2019: Dá o Destino votos e liberdades a quem não quer deles saber, quais nozes a desdentados? Por casualidade pessoal ou distracção, saber que daqui a pouco mais de uma semana estarei a exercer a mais básica liberdade democrática, que tanto me faltou até aos vinte e poucos anos, deixa-me estranhamente desinteressada, quase indiferente. Nunca faltei a uma eleição, nem a esta faltarei. Mas o entusiasmo de outros tempos parece ter-se desvanecido e embora a abstenção que vai persistindo não deixe de me irritar, já sinto menos força na convicção de que o voto deveria ser legalmente obrigatório.

Efeito natural do envelhecimento e de alguns percalços de saúde meus, ou saturação democrática de uma normalidade que se torna tão natural que sugere tédio, desinteresse, indiferença?

Estupidez certa e fatal. É preciso acordar e depressa, sugere o meu lado consciente, ao ler o disparate que acabo de escrever.

O Mundo está cada vez mais perigoso, menos democrático, mais a aceitar demagogias e demagogos xenófobos e racistas, o ovo da serpente parece ter-se conservado no covo de algum polvo escondido, como os dinossauros em potência das histórias fantásticas em banda desenhada feitas filme.

Portugal parece razoavelmente imune ao mal que assola democracias consolidadas ou algumas recentes e a quase todas as fantasias sobre a ‘invasão’ dos migrantes que o Ocidente próspero incubou nos territórios de origem que saqueou e que permitem a persistência na divisão natural entre ‘eles’ e ‘nós’. E o regresso de fronteiras, muros, barreiras de toda a ordem, incluindo as mais eficazes, na cabeça das pessoas. Será que isso se explica porque não acolhemos, até agora, tanta gente assim? E porque o nosso país não será dos mais apetecidos pelos que buscam refúgio e protecção?

Não tenho seguido com total atenção a campanha eleitoral, um dos sinais da minha habituação ao luxo do ‘cansaço democrático’. Ainda assim, percorrendo de memória o que fui ouvindo, não notei nos vários discursos e debates grande preocupação com a defesa da democracia ou com a necessidade imperiosa de combater a desigualdade e exclusão, também em termos de migração e asilo. Suponho que é dado como adquirido que isso é imperativo político-constitucional, logo não é preciso discutir muito o assunto.

Mas perante o que se vai passando em Gilead e os caminhos que parecem convergir nessa distopia imaginada pela fabulosa Margaret Atwood, não deveria a campanha que decorre prestar mais atenção ao risco mundial de retrocesso que já se concretizou em tantas alterações legais e políticas aquém e além-mar?

De cada vez que ligo a rádio para ouvir as notícias, parece-me que a única questão que se coloca e centra as atenções é a de saber se a maioria absoluta de um partido é possível ou desejável, ou se os leaders parceiros de uma aliança política já se insultaram ou ripostaram de novo.

Será só às leitoras de Atwood que se tornou evidente o risco de morte da Democracia, que pode soçobrar também a pretexto da próxima falência de um qualquer gigante de viagens de férias que precipite uma crise económica mundial, antecipando o desastre energético ou climático que se suporia provável que chegasse antes, mesmo se tantos continuam a olhar horizontes enevoados sem perceber bem o que os está cegando?

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