A Europa que é útil

A ameaça à estabilidade e sucesso do projeto europeu não reside apenas naqueles que, abertamente, querem o seu fim. Ela reside também naqueles que querem que ela deixe de ser um projeto, para passar a ser um Estado.

Independentemente da composição da Comissão Europeia que entrará em funções em breve, há coisas ainda mais importantes para discutir quando se fala de Europa. Seja qual for a Comissão (que deve ser escrutinada, claro), o que importa mesmo é que a União Europeia (UE) seja útil aos seus cidadãos.

Sempre que vejo pessoas muito surpreendidas com a crise – ou crises que se vive na UE, ou mesmo com a possibilidade real de esta estar ameaçada por forças eurocéticas, surpreende-me sempre ainda mais a sua surpresa. É que só pode ficar assim surpreendido e transtornado quem imagina a UE como um sonho que, como qualquer sonho, não é real.

A UE tem uma dimensão utilitarista. Ela é boa enquanto for útil. Aceitar este princípio utilitarista inerente à UE não é desvalorizar o projeto europeu. É carregá-lo de realismo e é até retirar-lhe pressão, para que não tenha de ser algo que não é. A UE nasceu porque os Homens consideravam que ela seria útil para alcançar a paz, manteve-se por ser útil do ponto de vista económico, pelas oportunidades que gerou e por representar um código de valores que se foi considerando como merecedor de proteção. Hoje não será diferente. A UE é um projeto e os projetos vivem enquanto os seus protagonistas – neste caso, as pessoas – sentirem que não dão mais do que aquilo que recebem em troca.

Se a UE é boa enquanto for útil, é apenas natural que, durante a crise económica, ela tenha deixado de ser tão boa, levando consequentemente a que as pessoas tenham começado a questionar a utilidade nas suas vidas. Ou que tenham começado a pensar até que, se calhar, não precisam dela para viver melhor. Desde a crise económica, os cidadãos europeus conheceram uma nova faceta da UE. Já conheciam a faceta do Erasmus, dos fundos europeus, da “abolição” de fronteiras. Conheciam, portanto, a UE que trazia vantagens. Passámos a conhecer a UE do rigor orçamental, da responsabilidade financeira, dos procedimentos por défice excessivo, das sanções.

Se isso explica a desilusão, a resposta não passa por sonhar mais, mas por realisticamente explicar que é assim que deve ser. E porquê.

Dito isto, é essencial acrescentar dois pontos: primeiro, que a Europa não precisa de se reinventar todos os dias para que se acredite nela. Segundo, que tudo isto não invalida que faça sentido e que seja necessário relembrar a importância que a UE assumiu e que assume nas nossas vidas. Porque isso também prova a sua utilidade e lembra-nos que continua a trazer mais vantagens do que desvantagens.

Projetar a UE para lá desta dimensão utilitarista é dotá-la de um espírito que pode levar ao erro de se pensar que a União Europeia enquanto projeto é mais importante do que o impacto que ela assume na vida das pessoas. É querer encarar a UE como se fosse um Estado soberano, e que simplesmente por sê-lo não deve ser colocado em causa.

Este ponto tem consequências reais, que conhecemos e que geralmente são traduzidas na crítica à Europa das “várias velocidades” e à “necessidade de se falar a uma só voz”. É essencial desmistificar ambas. A Europa precisa de velocidades diferentes, porque os países são diferentes, têm culturas e tradições diferentes, porque encaram a História de maneira diferente, porque enfrentam desafios diferentes. Recusar as “diferentes velocidades” exigiria que a União tivesse um poder centralizado que falaria em nome dos Estados que a ela pertencem, que interpretaria as suas opiniões e que as dissolveria numa única. Para “falar a uma só voz” seria necessário que na UE existisse uma só voz, que se uniformizasse o discurso e, mais perigoso ainda, que se uniformizasse o pensamento. As consequências teriam tanto de dramático como de ditatorial. A riqueza da UE reside exatamente nas diferenças. A UE é mesmo um mosaico que merece ser preservado e a Europa sempre cresceu e melhorou devido à competitividade entre os diferentes países que dela fazem parte.

Em vez de se apelar à uniformização, dever-se-ia valorizar a diferença, valorizar a discórdia e aceitar que o resultado final não deve ser interpretado nem decidido por um poder central, mas que os Estados negoceiam e se comprometem com algo em conjunto. Eu quero que 28 comissários europeus discordem nas reuniões da Comissão, quero que 28 chefes de Estado ou de governo discordem nas reuniões do Conselho Europeu e quero que famílias políticas diferentes discordem no Parlamento Europeu.

O argumento, ou a frase, que costuma ser utilizada para contrapor esta ideia e que geralmente explica aquilo que alguns pretendem é a necessidade de haver “mais e melhor Europa”. Mas é imperativo questionar se isso, hoje, é sequer possível. Mais Europa, ou significa integrar mais países, ou significa mais integração para os que já fazem parte. Ou então significa ambos. Será que isso resultará numa melhor Europa? Não creio e penso que será mais uma tentativa de ignorar aquilo que nos distingue. Não é preciso mais Europa para ter uma melhor Europa. Pelo contrário, se queremos “melhor Europa” precisamos de menos Europa em determinadas matérias. Precisamos de resistir a uma maior integração política e precisamos de resistir a uma transferência de poderes dos Estados para a UE. Precisamos, por exemplo, de manter e proteger a regra da unanimidade em matérias essenciais como a fiscalidade, a política externa, a segurança e a defesa.

Teremos uma melhor Europa quando se respeitar, de facto, as diferenças que existem entre os países, quando aceitarmos que “falar a uma só voz” é o passo que falta para centralizar o poder e que “mais e melhor Europa” não é possível.

Não tenho dúvidas de que a ameaça à estabilidade e sucesso do projeto europeu não reside apenas naqueles que, abertamente, querem o seu fim. Ela reside também naqueles que querem que ela deixe de ser um projeto, para passar a ser um Estado.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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