A transformação da política

Na sociedade do conhecimento o saber contará tanto como o poder e esta é uma grande transformação da política. A sociedade digital irá trazer-nos o 4.º setor e uma verdadeira revolução política e social no modo de conceber as instituições, o mundo do trabalho e as organizações da sociedade civil.

Agora que se prepara um novo ato eleitoral é a altura para atualizar o nosso ponto de partida, a nossa polity. Este pequeno escrito é, ainda, uma singela homenagem ao filósofo espanhol Daniel Innerarity. A transformação da política é uma constante do seu pensamento [1]. Pela sua atualidade, vejamos alguns planos dessa transformação que, hoje, percorrem e estruturam a sociedade em que vivemos.

A transformação da política na era global e cosmopolita

Na era global e cosmopolita, uma nação é, cada vez mais, uma coleção de diásporas, onde o cidadão vive, cada vez mais, em estado de topoligamia e a separação progressiva do estado e da nação é o acontecimento mais importante na passagem da modernidade para a pós-modernidade. A política deixou de ser um assunto exclusivo do estado-administração. Doravante, teremos de construir comunidades políticas à medida dos nossos interesses, isto é, comunidades políticas de autogoverno e outras formas de ação coletiva em rede colaborativa e cooperativa. Na era global, a 1.ª fase traduziu-se em desindustrialização e deslocalização o que levou à emergência do segundo mundo; a 2.ª fase está em curso e leva-nos até à automatização e digitalização de processos industriais e serviços terciários; a 3.ª fase chegará com o Antropoceno, o novo regime climático, e as grandes vagas migratórias que alterarão a forma como vivemos e ocupamos o território. A transformação da política terá à sua frente um imenso campo de oportunidades, sobretudo na criação de novas formas de sociabilidade e empatia que informarão a sociedade do 4.º setor.

A transformação da política dos territórios

Numa sociedade cada vez mais distribuída e policêntrica, os territórios estão obrigados a aprender, a ser territórios cognitivos e reflexivos. As sociedades de hoje são muito contingentes, um misto de acaso e necessidade entre a margem de liberdade à nossa disposição e as restrições e limites que nos condicionam.

A base territorial será progressivamente dessacralizada, o Estado-nação deixará de controlar o seu território, enquanto os movimentos mais radicais protestarão contra o estado porque este não garante a sua soberania. Há, com efeito, uma discrepância muito grande entre a necessidade de uma identidade coletiva para enfrentar os desafios globais e, por outro lado, o radicalismo individualista, a necessidade de afirmar a nossa diferença radical. Está a ser difícil conciliar estas duas dimensões do espaço público, pois a liberdade radical pulveriza e fragmenta todas as formas de organização, das mais pequenas até às maiores. Esta é, também, a razão pela qual as políticas de integração ou assimilação correm o sério risco de ser contraproducentes, pois não é de identidade que se trata, mas de diferenciação e diversidade. As culturas, como as pessoas, são muito egoístas e afirmar a integração é despertar a desobediência civil. A política é vítima fácil desta circunstância.

Perante esta radicalidade, o mundo não cabe em classificações, tipologias ou culturas existentes. Necessitamos de outras linguagens para lidar com singularidades, diferenças, exceções, descontinuidades, contrastes. A tudo isto, acresce outro problema, a saber, a “sobreprodução funcional da sociedade” por via da tecnologia dos subsistemas que suportam a sociedade e o Estado.

A transformação política da sociedade

Os vários subsistemas funcionais e as respetivas corporações, tarde ou cedo, acabam por gerar uma “sobreprodução funcional” que põe em causa a sociedade como um todo e, bem assim, a sua governabilidade. Os avanços da tecnologia aumentam ainda mais esta “sobreprodução funcional” que é, também, uma intrusão nos limites dos sistemas funcionais existentes. Levámos tão longe a especialização funcional, criámos tantas linguagens especializadas e outros tantos códigos de linguagem que hoje temos uma dificuldade crescente em comunicar. Ou seja, estamos perante um verdadeiro desconcerto comunicativo, donde a extrema necessidade do trabalho transdisciplinar.

Esta interdependência sistémica apresenta, além disso, um risco muito elevado. Na verdade, muitos subsistemas funcionais e respetivas corporações conseguem sobreviver porque praticam o free rider, isto é, não pagam os efeitos externos das suas externalidades negativas, porque “a política colabora e facilita a socialização do prejuízo”. Ora, justamente, a função da política é chamar à responsabilidade esses subsistemas mais intrusivos e evitar a sua dinâmica centrifuga prejudicial à sociedade.

A transformação da política em benefício da própria política

Ora, hoje já não há um vértice para o Estado, há sim, cada vez mais, espaço para um governo de contexto, com mais poder coordenativo, colaborativo e regulatório. O Estado já não comanda a sociedade porque a sua competência é limitada e a sua incompetência é ilimitada. Não é a unidade, nem o comando único que importa, mas a boa coordenação e a regulação. Todo o governo é antes de mais autogoverno e autolimitação. Aprofundar a diferenciação sem provocar a fragmentação, deve ser o objetivo. Cuidado, portanto, com a omnisciência da política, pois, mais uma vez, a sua competência é limitada e a sua incompetência ilimitada. Se quisermos, necessitamos de procedimentos e ficções de consenso para escapar à incompetência da política.

A autonomia crescente e a legitimidade ativa dos subsistemas funcionais que formam a sociedade criam cada vez mais ingovernabilidade. Tradição e autoridade já não são suficientes para reduzir essa ingovernabilidade. Além disso, é preciso proteger a política da política, da sua pretensão de ter competência para tudo. A política já não tem o poder de obrigar, ela envelheceu, perdeu autoridade. Está sobrecarregada, é cada vez mais superficial, muitas vezes à beira da trivialidade e da ligeireza.

Por isso, como não há solução para todos os casos arranjamos sucedâneos, isto é, um procedimento e um sistema de negociação, aproximações sucessivas que vão reduzindo as margens de incerteza do acaso. De resto, não se mede a inteligência de um sistema pela sua capacidade de formar consenso, mas pela capacidade de fazer progredir o dissenso, de promover o tratamento das diferenças por via do estabelecimento de “ficções ou falsos consensos”. São precisamente os procedimentos que produzem aqueles momentos de consenso na corrente continuada das diferenças. Ora, justamente, as ficções de consenso servem para fazer descansar os contendores, funcionam como balizas ou restrições para a discussão. Como se comprova no caso da política europeia.

A transformação da política na união europeia

A política europeia é, porventura, o melhor exemplo de transformação da política em tudo o que se refere à redefinição dos seus limites. Desde logo, nos limites entre políticas maioritárias e políticas consensuais. Depois, no que diz respeito aos programas político-ideológicos que desapareceram da frente de combate. Finalmente, na arte do agir comunicacional, onde o discurso político deu lugar à arte da retórica, a um verdadeiro “branqueamento” das posições políticas, lá onde a administração dos interesses toma o lugar da governação política

A arte da retórica é o reino do procedimento e da neutralidade possíveis. Esta é, aliás, a razão pela qual a União Europeia não suporta uma ordem constitucional, que fecha em vez de abrir. A sociedade, a economia e a política já não podem ser abordados dessa forma, unitariamente. Ao contrário. Ser europeu é uma mais valia fundamental, pois o nosso horizonte de aspirações, expetativas e valores alarga-se substancialmente e tanto mais quanto a comunidade de procedência dá lugar à comunidade de destino.

Na União Europeia há muito mais espaço para a reinvenção das nações. As nações são mais amplas que o estado, afirmam-se pela sua vitalidade cultural e simbólica, muito para lá dos limites do estado. No mesmo sentido, entre a União e os Estados membros não há uma quantidade fixa de atribuições e competências e, portanto, uma espécie de jogo de soma nula. A soberania deixou de ser exclusiva para ser inclusiva, imaginativa e cooperativa. Esta é a sua maior força, mas, também, a sua maior fraqueza, como, de resto, podemos observar agora mesmo, quando se discute a distribuição dos lugares políticos pelas diferentes instituições europeias.

A transformação da política e os novos mercados do trabalho

Na sociedade tecnológica e digital iremos assistir a profundas transformações nos mercados de trabalho e emprego tal como os conhecemos ainda hoje. Em particular, a desintermediação comercial, administrativa e institucional (o 3.º setor) passará por um profundo emagrecimento e muitas das suas atividades transitarão diretamente para os clientes/utilizadores através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos de partilha. O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser “adjudicado” por ONG com estatutos diversos, do setor do ambiente e da economia circular e, também, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros. A estes setores teremos, ainda, de juntar duas grandes áreas com marca muito impressiva, a saber, a educação e investigação científica e tecnológica e todo o setor criativo e cultural, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades. A este imenso conjunto de setores em trânsito paradigmático damos aqui a designação de “4.º setor”.

A inovação tecnológica e social no 4.º setor permitirá que as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizem novos formatos de prestação de serviços com suporte em plataformas tecnológicas cujas aplicações serão instaladas nos telefones móveis dos jovens e menos jovens. Algumas destas aplicações indicarão, mesmo, “perfis ocupacionais pluriactivos” com várias atividades e contagens de “tempo de serviço” respetivos. Nesses perfis ocupacionais, o trabalho a tempo parcial estará associado, provavelmente, a uma formação profissional, a um banco do tempo, a uma prestação de serviço em regime freelancer e em “atividades úteis à comunidade” como, por exemplo, os serviços ambulatórios ou a agricultura social e comunitária.

Notas Finais

Na sociedade do conhecimento o saber contará tanto como o poder e esta é uma grande transformação da política. Nesta sociedade o Estado-administração precisará de aprender com os erros, os subsistemas funcionais da sociedade precisarão de refletir sobre a sua própria política de autolimitação, a política europeia continuará a surpreender-nos pelas boas e más razões, a sociedade digital irá trazer-nos o 4.º setor e uma verdadeira revolução política e social no modo de conceber as instituições, o mundo do trabalho e as organizações da sociedade civil.

Nesta sociedade tecnologicamente distribuída os cidadãos precisarão de constituir comunidades de autogoverno e, nessa medida, aliviar um “estado sobrecarregado” onde facilmente se aloja o tráfico de influências e a corrupção. Por outro lado, maior interdependência significa mais contingência, logo, é preciso “negociar” com a contingência e arranjar procedimentos para lhe dar um curso conveniente. É aqui que surge o autoritarismo como uma tentativa de expulsar a contingência e é aqui que as democracias liberais podem colidir com as democracias iliberais. Se as primeiras forem incapazes de lidar com a incerteza própria da contingência, contendo-a dentro de certos limites, então, as segundas podem irromper à superfície, trocando, abusivamente, liberdade por segurança. A União Europeia, neste momento, é bem o exemplo de um campo de forças onde a transformação da política nos transporta para terreno desconhecido, onde as promessas esgotadas das democracias liberais e os valores de refúgio prometidos pelas democracias iliberais se perfilam frente a frente.

[1] A política em tempo de indignação (2016), O futuro e os seus inimigos (2011), O novo espaço público (2010), A sociedade invisível (2009), A transformação da política (2005)

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