Decisão histórica do Supremo Tribunal manda reabrir o Parlamento britânico

Tribunal aplica derrota pesada ao Governo de Johnson, acusando-o de “frustrar e impedir” os deputados de desempenharem as suas “funções constitucionais”. Câmara dos Comuns reabre esta quarta-feira.

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Celebrações à porta do Supremo Tribunal, em Londres Reuters/HENRY NICHOLLS
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A activista Gina Miller, que contestou a suspensão do Parlamento nos tribunais, mostrou-se naturalmente satisfeita com a decisão EPA/NEIL HALL
,Primeiro Ministro do Reino Unido
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Boris Johnson está em Nova Iorque e deve regressar amanhã a Londres, para participar na reabertura da Câmara dos Comuns Reuters/HANNAH MCKAY
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Decisão foi anunciada pela juíza Brenda Hale EPA/SUPREME COURT / HANDOUT HANDOUT
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Protestos contra a suspensão de Westminster, em Londres EPA/WILL OLIVER

O estado de excepcionalidade em que a política britânica se encontra mergulhada há meses sem fio, às custas do processo de saída do Reino Unido da União Europeia, conheceu esta terça-feira mais um capítulo surpreendente. E histórico. O Supremo Tribunal britânico decretou que a decisão do Governo de suspender o Parlamento durante mais de um mês é ilegal e que, por isso, é como se não tivesse sequer acontecido. Westminster reabre as portas quarta-feira, dando sequência a um veredicto muito penoso para Boris Johnson e que lhe retira espaço de manobra na missão de cumprir o “Brexit” a 31 de Outubro.

A partir de Nova Iorque, nos Estados Unidos, onde participa na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, o primeiro-ministro britânico assumiu a desilusão com a decisão dos juízes, mas assegurou que o Governo vai cumpri-la. Quanto à estratégia para o “Brexit”, afiançou, nada muda. Fechar um acordo com Bruxelas, até à cimeira europeia de Outubro, é prioridade máxima.

“É óbvio que vamos respeitar o veredicto e o processo judicial. Discordo profundamente da conclusão dos juízes, mas vamos prosseguir e é claro que o Parlamento vai voltar a reunir-se. O mais importante é avançar e cumprir o ‘Brexit’”, garantiu Johnson. “De acordo com a lei em vigor, o Reino Unido vai sair da UE a 31 de Outubro, aconteça o que acontecer, mas o mais entusiasmante será tentarmos alcançar um bom acordo”.

Se é certo que Westminster vai reabrir as portas na quarta-feira ao final da manhã, como anunciado pelo speaker (presidente) da Câmara dos Comuns, John Bercow, o rumo a seguir pelos tories, daqui para a frente, poderá ficar no segredo dos deuses. Pelo menos até ao final do congresso anual do Partido Conservador, que se inicia no próximo domingo.

Cenários

Entre os jornalistas e analistas britânicos acredita-se que Downing Street vai continuar a forçar Jeremy Corbyn a aceitar eleições. Um outro cenário, mais drástico, seria avançar para nova suspensão do Parlamento. Esta possibilidade advém de uma interpretação extensiva das declarações de Johnson, esta terça-feira, que disse querer manter o Discurso da Rainha – que marca o início da nova sessão legislativa e onde é apresentado o programa de Governo – para 14 de Outubro. Para tal, a lei obrigá-lo-ia a pedir à rainha Isabel II nova suspensão da actividade parlamentar.

Num outro cenário, puramente especulativo, mas sussurrado nos corredores do Partido Conservador, esperar por uma derrota numa eventual moção de censura ao Governo, colocaria a pressão sobre os ombros dos trabalhistas para formarem uma solução provisória, suportada pelos restantes partidos da oposição, que pedisse o adiamento da saída à UE e agendasse novas eleições.

Dessa forma, acredita-se, Johnson escusava-se de uma humilhação em Bruxelas e avançava para a votação como favorito que é, segundo as sondagens, transformando-a num autêntico referendo: de um lado, a vontade popular de cumprir o “Brexit”, do outro, o Parlamento que o quer frustrar.

Até ao congresso tory, prevê-se, então, que a oposição aproveite a reabertura do Parlamento para encostar (ainda mais) o executivo à parede e reforçar a legislação, já aprovada, que impede Johnson de avançar para um “Brexit” sem acordo, sem a autorização expressa dos deputados.

Decisão unânime

O primeiro-ministro britânico tinha pedido autorização à rainha Isabel II para suspender (ou prorrogar, segundo o termo legal) os trabalhos do Parlamento a partir de 10 de Setembro e agendar o início de uma nova sessão legislativa para o dia 14 de Outubro. E a monarca, como manda a tradição constitucional britânica, seguiu os conselhos do Governo e deu luz verde à suspensão.

A decisão foi justificada pelo executivo conservador como a necessidade de ter de preparar legislação sobre saúde, criminalidade e infra-estruturas, mas foi entendida pela oposição como uma jogada para tirar tempo de trabalho aos deputados que querem evitar um no-deal.

Entre as diversas acções de contestação à suspensão de Westminster, colocadas perante tribunais inferiores, o Supremo escolheu apreciar dois recursos que tiveram decisões distintas, em tribunais distintos, apesar de apresentarem argumentos jurídicos semelhantes. A conclusão foi unânime entre os 11 juízes da mais alta instância judicial do país.

“O Tribunal (…) conclui que a decisão de aconselhar Sua Majestade a suspender o Parlamento foi ilegal, uma vez que teve o efeito de frustrar ou de impedir a capacidade do Parlamento de prosseguir o desempenho das suas funções constitucionais, sem uma justificação razoável”, anunciou a presidente do colectivo de juízes, Brenda Hale, declarando a suspensão que assumiu desde logo, e antes de anunciar a decisão, que não se tratou de uma “suspensão normal” e que esta teve um “efeito extremo nos alicerces da nossa democracia”.

“A suspensão é nula e não tem efeito. O Parlamento não foi sequer suspenso. Cabe agora ao speaker e ao lorde speaker decidirem o que fazer a seguir. A não ser que exista algum regulamento parlamentar que desconheçamos, podem tomar imediatamente as medidas necessárias para permitir que cada uma das Câmaras se reúna o quanto antes”, acrescentou Hale.

A decisão, insistiu a juíza, não pretende avaliar os méritos da estratégia do Governo para o “Brexit”, nem determina quando, ou de que forma, o Reino Unido vai sair da União Europeia. Johnson e companhia não partilham, no entanto, da mesma ideia, e assumem que o veredicto torna mais difícil cumprir o resultado do referendo de 2016. 

Pouco depois de conhecida a decisão, o speaker da Câmara dos Comuns congratulou-se com a defesa dos “direitos e deveres do Parlamento para escrutinarem o executivo e responsabilizarem os ministros” e anunciou o agendamento de uma sessão plenária para quarta-feira, às 11h30, e fez questão de sublinhar que vai aceitar propostas de debate urgentes.

Oposição quer demissão

Entre a oposição ao Governo de Johnson, o veredicto do Supremo foi recebido com bastante alívio. E a certeza de que o tempo do sucessor de Theresa May acabou. Em Brighton, no Sul de Inglaterra, onde decorre o congresso do Partido Trabalhista, o seu líder, Jeremy Corbyn, congratulou-se com a decisão “histórica” e convidou Boris Johnson a “reconsiderar a sua posição”. 

“O primeiro-ministro falhou. Nunca conseguirá silenciar a democracia e a voz popular”, atirou o responsável do Labour, que aproveitou o balão de oxigénio político para antecipar o seu discurso de encerramento do congresso, de quarta-feira para esta terça-feira. 

“O Parlamento estará de volta quarta-feira e o Governo será responsabilizado pelo que fez. Boris Johnson foi declarado culpado por ter enganado o país. Este primeiro-ministro, que nem foi eleito, deve agora demitir-se”, defendeu Corbyn, sem revelar, no entanto, se tem uma estratégia concreta para fazer cair Johnson – avançará para uma moção de censura ao Governo?

Na mesma linha de Corbyn, Liberais-Democratas, Partido Nacionalista Escocês e Plaid Cymru também pediram ao primeiro-ministro que abandone o cargo. Já o Partido Unionista Democrático – aliado dos tories no Parlamento – garantiu “respeito pelo princípio da separação de poderes” e pela decisão do Supremo.

Duas semanas depois de os deputados da oposição terem permanecido na Câmara dos Comuns pela madrugada fora, empunhando cartazes que diziam “silenciados” e cantando acapella músicas tradicionais e de intervenção, as duas câmaras do Parlamento reabrem na quarta-feira para permitir que o “Brexit” retome o palco. Entre o entusiasmo pelos tempos insólitos que se vivem e a indefinição em redor do desfecho da maior novela política da História recente do Reino Unido, a única certeza é que o relógio não parou com a suspensão dos trabalhos. O dia 31 de Outubro está aí à porta.

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