Fiat e Starbucks: Bruxelas ganha e perde no Tribunal de Justiça europeu

Juízes confirmam que Luxemburgo deu vantagens fiscais à Fiat, mas anulam decisão de Bruxelas contra a Holanda por causa de acordo fiscal com a Starbucks.

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Vestager, futura vice-presidente da Comissão, garante que vai continuar a investigar os esquemas de planeamento fiscal agressivo Lusa/José Sena Goulão

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) deu a conhecer nesta terça-feira duas decisões em sentido oposto em relação ao impacto dos esquemas fiscais da Fiat no Luxemburgo e da Starbucks na Holanda.

Depois de a Comissão Europeia considerar que as duas multinacionais beneficiaram de “vantagens fiscais selectivas” que punham em causa a concorrência no mercado interno europeu, os dois casos foram parar ao tribunal europeu, onde os juízes tiveram de avaliar se Bruxelas decidira bem ou mal. No primeiro, sim; no segundo, não.

Recuando no tempo: em 2015, depois de investigações formais abertas pouco antes das revelações do LuxLeaks, Bruxelas concluiu que acordos fiscais emitidos pelas autoridades tributárias do Luxemburgo e da Holanda tinham reduzido de forma artificial o IRC pago pelas empresas, pondo em causa a concorrência e podendo assim ser consideradas “vantagens fiscais ilegais” do ponto de vista das regras europeias das ajudas de Estado, o que levou as duas multinacionais e os dois Estados-membros a recorrerem para o TJUE.

Entretanto, os juízes deram razão a Bruxelas em relação à investigação aprofundada à Fiat no Luxemburgo, ao confirmarem a interpretação de que o grupo automóvel beneficiou de “vantagens fiscais selectivas” no Grão-Ducado que lhe permitiram pagar menos impostos usando um esquema de empréstimos financeiros intra-grupo. Já no segundo caso, o TJUE anulou a decisão da Comissão por discordar que o esquema fiscal usado pela Starbucks, através de preços de transferência em operações realizadas entre as empresas do grupo, violava as regras da concorrência.

Um caso significa uma vitória e outro uma derrota para a interpretação da comissária Margrethe Vestager. Bruxelas diz estar a analisar “cuidadosamente” as sentenças do TJUE e, para já, a futura vice-presidente da Comissão sublinha como as investigações europeias têm sido relevantes para forçar uma mudança de atitude dos governos e das empresas a favor do que considera ser a justiça fiscal.

Bruxelas tem outros dossiers em curso — um deles visa Portugal directamente, com a investigação às isenções fiscais concedidas as empresas da Zona Franca da Madeira (ZFM) — e, por isso, as decisões do Tribunal são relevantes para guiar avaliações futuras. Foi a própria comissária dinamarquesa a sublinhar que os acórdãos de hoje “dão orientações importantes sobre a aplicação das regras da UE em matéria de auxílios estatais no domínio da tributação”.

Ao reagir às decisões desta terça-feira, a mensagem da comissária liberal foi a de sublinhar que nada ficou como dantes depois de Bruxelas agir. “Todas as empresas, grandes e pequenas, devem pagar a sua quota-parte dos impostos” e esse objectivo “só é alcançado através de uma combinação de esforços para fazer alterações legislativas, para aplicar as regras dos auxílios estatais e com uma mudança na filosofia das empresas. Já fizemos muitos progressos a nível nacional, europeu e mundial — e precisamos de continuar a trabalhar em conjunto para ter sucesso”, incentivou.

Os financiamentos da Fiat

As decisões da Comissão Europeia determinavam que o Luxemburgo e a Holanda exigissem às respectivas multinacionais o IRC em falta, mas, agora, o desfecho é diferente porque as decisões do TJUE são distintas: num caso confirma e noutro anula a recuperação do auxílio ilegal.

O processo da Fiat tem a ver com o facto de em 2012, quando Jean Claude Juncker ainda era primeiro-ministro do Grão-Ducado, o fisco luxemburguês ter emitido uma “decisão fiscal antecipada” a favor da Fiat Finance and Trade (uma empresa do grupo Fiat que, estando sediada no Luxemburgo, faz transacções financeiras empresas do grupo Fiat na Europa, incluindo empréstimos intragrupo a outras construtoras suas).

Bruxelas considerou que o acordo fiscal dava luz verde a uma “metodologia artificial e extremamente complexa” de cálculo dos lucros tributáveis que não reflectia as condições de mercado da empresa, levando a uma descida artificial do IRC.

Apesar de a Fiat e o Luxemburgo terem discordado e recorrido para o TJUE, foi a interpretação da CE que o Tribunal de Justiça agora validou. Na prática, mantém-se de pé a obrigação de a Fiat repor nos cofres públicos do Luxemburgo um montante de 23,1 milhões de euros.

Anulados 25,7 milhões exigidos à Starbucks

Quem também já tinha sido instruída para recuperar 25,7 milhões em impostos à Starbucks foi a Holanda, valor que, entretanto, o tribunal vem dizer que não tem de ser pago pela multinacional.

Neste caso, Bruxelas tinha avaliado um acordo prévio emitido pelo fisco da Holanda a favor da Starbucks Manufacturing relativo a “preços de transferência”. Em causa estava um esquema de planeamento fiscal que envolvia a Starbucks Manufacturing EMEA (empresa de torrefação de café do grupo na Europa, sediada na Holanda) e a Alki (empresa do mesmo grupo mas sediada no Reino Unido) e ainda a Starbucks Coffee Trading Sarl (na Suíça).

Bruxelas considerou que o acordo fiscal emitido pela administração fiscal holandesa diminuía de forma artificial os impostos pagos pela Starbucks Manufacturing, tanto pelos “royalties substanciais” pagos à empresa sediada no Reino Unido “pelo seu know-how no domínio da torrefação de café”, como pelo “preço inflacionado” pago pelo café verde à outra empresa suíça.

No caso dos royalties pagos à Alki, a Comissão considerou que o valor não reflectia correctamente o valor de mercado, fazendo com que uma grande parte dos lucros tributáveis da Starbucks fossem desviados indevidamente para a Alki, que fica sem pagar IRC tanto no Reino Unido como na Holanda.

No entanto, o tribunal considerou que a Comissão Europeia não conseguiu demonstrar de que forma o acordo beneficiou a Starbucks. Os juízes consideram que Bruxelas não conseguiu invocar nenhum elemento que permita concluir que a escolha do “método da margem líquida da operação” como forma de determinar a remuneração da Starbucks Manufacturing EMEA levaria necessariamente, por si só, a um resultado mais vantajoso para o grupo em termos fiscais; assumiu que a mera escolha deste método de cálculo conferiu vantagem à empresa sediada na Holanda. Feitas as contas, acabou por dar razão à Holanda e a Starbucks anulando a decisão europeia.

A Comissão garante que “continuará a analisar as medidas de planeamento fiscal agressivo ao abrigo das regras da UE em matéria de auxílios estatais para avaliar se resultam em auxílios estatais ilegais”. Para Vestager, “se os Estados-membros concedem a determinadas empresas multinacionais vantagens fiscais não disponíveis aos seus concorrentes, isso prejudica a concorrência leal na União Europeia”.

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