A repetitiva redundância dos debates sobre os debates

Milhões de pessoas em todo o mundo são vítimas de gostarem do que fazem.

Foto
Rui Rio e António Costa durante o último debate entre ambos António Cotrim/Lusa

Há pessoas que gostam do que fazem e há pessoas que fazem o que gostam. Parece a mesma coisa, mas há um enorme aumento de impostos entre as duas. Lembrei-me disto enquanto via o debate entre António Costa e Rui Rio, na segunda-feira passada. (Disto e de uma barata gigante a agitar bandeirinhas de Portugal com as antenas à passagem de um busto de D. Sebastião que se desloca em cima de um par de pernas minúsculo, mas hoje não vamos falar sobre as minhas ideias para o 10 de Junho.)

Milhões de pessoas em todo o mundo são vítimas de gostarem do que fazem. Gostar do que se faz é uma doença que se apanha cedo e que só passa se o doente tiver a sorte de ganhar o Euromilhões. Até que isso aconteça, vai-se gostando do que se faz, mesmo que não se faça o que se gosta.

Para se gostar do que se faz, basta ter um chefe porreiro e sair a horas decentes para ver o Preço Certo em Euros; mas para se fazer o que se gosta — o que se gosta realmente, como tocar guitarra baixo nos Ramones na passagem de ano de 1977 para 1978 no Rainbow Theatre de Londres —, é preciso que o trabalho se misture com o prazer até ao ponto de não sabermos onde começa um e acaba o outro. (Isso e uma máquina de viajar no tempo, mas hoje não vamos falar sobre as minhas ideias para o “Brexit”.)

Vem isto a propósito de António Costa e Rui Rio, dois incansáveis operários do bem comum que encarnam na perfeição os exemplos de que esta crónica precisa urgentemente para não perder ainda mais leitores do que nos parágrafos anteriores.

Enquanto Rui Rio fala ao país como se estivesse a fazer contas às horas para o início do Preço Certo em Euros, António Costa parece estar sempre a atacar o Blitzkrieg Bop dos Ramones numa guitarra baixo pendurada à altura dos joelhos.

É verdade que imagens como estas podem perturbar o sono das crianças e dos adultos facilmente impressionáveis, mas não deixam de ser apenas um reforço daquilo que os comentadores já disseram 45.765 vezes (boa sorte para esse fact-checking, colegas): Rui Rio até pode gostar muito do que faz, mas António Costa faz o que gosta e nasceu para aquilo.

Ora bem, mas afinal o que vem a ser isto de nascer para aquilo? (E quantas vezes é preciso dizer que o galão é morno, se faz favor?)

Um dos maiores paradoxos desta vida é que nascer para alguma coisa pode não significar coisa alguma, e nos casos em que alguma coisa significa, coisa boa pode não ser. Em nenhuma outra área da actividade humana isso é tão evidente como na política, onde ditadores, democratas e aspirantes a ditadores e democratas são igualmente recordados como pessoas de grande carisma — afinal, a marca de quem nasceu para aquilo.

Quer isto dizer que estamos a chamar ditador a António Costa, internet? Não, a não ser que isso dê muitos cliques.

A questão é outra: é possível acompanhar uma campanha entre uma pessoa que nasceu para aquilo e uma pessoa a quem parece faltar jeitinho, e centrar a atenção apenas nas ideias e nas propostas? Talvez não, mas também não há provas de que as hesitações, as inflexões e outras transpirações sejam assim tão importantes aos olhos dos telespectadores que mereçam um protagonismo exagerado nos comentários e análises.

É aquilo a que nós, os que se preparam para terminar este texto, chamamos de síndrome do debate Nixon/Kennedy.

Desde esse debate, em Setembro de 1960, os cientistas têm tentado criar em laboratório um antídoto para a convicção de que os telespectadores dos debates têm mais olhos para a forma do que para a substância. Mas essa batalha está perdida — é por isso que as hesitações, as inflexões e outras transpirações são sempre vistas como autogolos por comentadores desejosos de declarar vencedores e vencidos.

Mas nem sempre é assim.

“As pistas visuais que estão à disposição dos telespectadores podem complementar ou contradizer a imagem que é comunicada pelas ideias dos candidatos. Mas assumir que essas pistas visuais se sobrepõem à substância parece ser manifestamente injustificado”, dizem David L. Vancil e Sue D. Pendell num estudo de 1987 intitulado “O mito do desacordo entre telespectadores e ouvintes no primeiro debate Nixon-Kennedy”.

Segundo esse mito, Kennedy ganhou o debate na televisão porque era jovem e cheio de estilo, e Nixon ganhou o debate na rádio porque aí era mais fácil esconder dos ouvintes a sua aparência cansada e descuidada. Como quem conta um conto acrescenta um ponto, o mito cresceu tanto que não falta quem garanta que Kennedy foi eleito por causa desse debate.

Como em quase tudo na vida, a realidade é mais complicada do que isso. E o estudo de Vancil e Pendell dá esperança aos adversários dos candidatos que nasceram para aquilo, assim tenham alguma coisa de jeito para dizer: “O estudo das pistas visuais não deve basear-se num conceito superficial de imagem e substância que ignore a interdependência do emissor e do argumento. A imagem é importante para qualquer candidato num debate político, e as posições políticas dos candidatos são, intrinsecamente, imagens.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários