A comunidade reúne-se pela arte. E depois, o que fica?

Uma comunidade de Vila Nova de Famalicão sobe ao palco neste domingo, com meia centena de intérpretes a transformar as identidades locais em música. Iniciativas deste género já passaram, contudo, por outros pontos do país. Quem já participou fala de uma maior apetência para aprender coisas novas e realizar projectos em comum.

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Numa noite de Setembro, algumas dezenas de pessoas juntam-se em roda, pegam nos instrumentos – da guitarra eléctrica ao cavaquinho, do violão à gaita-de-foles, sem esquecer a voz – e tecem o som de um canção em que as palavras de ordem são “trabalhar, lutar ao som do canudo”; esse é um dos quatro temas que compõem o espectáculo comunitário agendado para este domingo, no Centro Social e Cultural de Bairro, que reúne à volta de 50 cidadãos de cinco freguesias no sudeste do concelho de Vila Nova de Famalicão.

Integrada no programa de descentralização cultural Aldeias em Festa, da Câmara, a apresentação, de 40 a 50 minutos, congrega músicos profissionais e gente sem qualquer formação na área. Junta ainda crianças, adultos e idosos num mesmo palco, adianta Ricardo Baptista, responsável da Ondamarela, colectivo artístico que orienta o projecto. A diversidade, observa, é “assustadora”, porque levanta sempre “muitas dúvidas”, nomeadamente àqueles que “experimentam pela primeira vez” iniciativas deste género, mas é também a “força do grupo”, porque lhe dá o “som específico”.

Mamede Alves tem 90 anos e vai contribuir para esse som com o violão, instrumento que já o acompanhava nos tempos em que participava numa designada orquestra popular, ainda vivos na memória. Residente na freguesia vizinha de Ruivães, ouviu falar da iniciativa e quis participar. À sua beira, Luís Ferreira, de 54 anos, toca cavaquinho, na véspera de se levantar às 03h00 do dia seguinte, para trabalhar - é motorista. “Tenho poucas horas, mas tinha mesmo vontade de vir conviver aqui com as pessoas”, diz.

Os ensaios da última semana procuram captar a identidade da zona. Qual é, afinal? É, por exemplo, o verde do Minho, os cortejos e as festas paroquiais ligadas à Igreja Católica, elenca Ricardo Baptista. As rotinas da indústria, em pleno Vale do Ave, também contribuem para esse mosaico. “Nas fábricas, as pessoas trabalhavam ao som das sirenes, mas só aqui ouvimos esta expressão “ao som do canudo”. Vertemos isso para a letra de uma das canções”, explica. Outro dos temas, cantado por uma avó e por uma neta, procura exprimir os afectos que habitam naquelas pessoas.

Desde 2012, a Ondamarela tem desenvolvido iniciativas em Portugal Continental, sobretudo no Norte e no Centro, mas também nos Açores (festival Tremor), e também no estrangeiro (Áustria e Malta). Em todos eles, diz Ricardo Baptista, o trabalho é uma “co-criação”, feita a partir do que todos os intervenientes “dizem, cantam, propõem” ou até inventam, como aconteceu em Bragança, na Orquestra Fervença, um projecto realizado em parceria com o músico britânico Tim Steiner. “Um dos participantes criou um instrumento para replicar o som dos eixos das rodas de carros de bois que acontecia pela cidade toda”, lembra.

A arte como transformadora de comunidades

Uma das participantes na Orquestra Fervença Bragança foi Leonor Afonso. Habituada a liderar projectos na área do teatro – coordenou, por exemplo, um projecto de teatro com os reclusos da prisão de Izeda, na zona sul do concelho transmontano -, passou para o “lado de lá” e actuou como percussionista. “Éramos cerca de 90 pessoas”, recorda. “Guardo sempre a ideia do Tim Steiner de que há sempre potencial artístico por explorar em cada um de nós”.

Leonor crê “piamente” que a “arte pode transformar a comunidade”. Das experiências, as consequências mais duradouras são os “laços afectivos” que resultam de projectos em comum e uma “sensibilidade” para a arte que “muitos intervenientes desconheciam em si mesmos”. “Dos participantes, há mais gente a ir hoje ao teatro”, alega por exemplo. Essa mudança também aconteceu na prisão, com os reclusos a tornarem-se pessoas “mais autoconfiantes” após a experiência com o teatro, uma arte, a seu ver, ainda mais emocional do que a música. “Ali, o instrumento é o nosso corpo. Temos de lidar com ele”.

Autor de uma tese sobre música comunitária, apresentada em Outubro de 2014, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, José Sinde realça ao PÚBLICO que as iniciativas desta natureza tendem a criar uma relação entre a “cultura, a saúde, o bem-estar dos participantes e a criação de uma identidade colectiva”. Das conversas com os seis entrevistados, entre os quais Ricardo Baptista e Artur Carvalho, do serviço educativo da Casa da Música, o psicólogo concluiu ainda que a música comunitária contribui para a “inclusão social” e para o aparecimento de novas formas de aprendizagem. Registou ainda, com “alguma surpresa”, o “uso predominante da percussão” nos espectáculos, talvez por promoverem “maior acessibilidade” a mais gente.

No domingo, a percussão vai-se ouvir no Centro Social de Bairro entre vozes de um coro. Uma delas é a de Luísa Rodrigues, de 36 anos. Formada em música, crê que aquelas comunidades banhadas pelo Rio Ave vão, neste domingo, “fazer uma apresentação com qualidade”. Mais importantes ainda são, porém, os “laços” que se vão manter entre as pessoas. “Temos tendência a ser individualistas, com os nossos empregos, as nossas casas, mas isto pode deixar as pessoas mais predispostas a fazerem coisas em comum. Vê-se uma união que até agora não existia”, reitera.

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