Uma “dança-luta” pela educação no Brasil

Dezasseis jovens que participaram no movimento das ocupações das escolas secundárias públicas de São Paulo trazem este domingo ao Porto, no âmbito do Mexe, o espectáculo Quando Quebra Queima, um testemunho vivo da mobilização estudantil.

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A companhia de teatro ColetivA Ocupação é uma das presenças especiais na recta final da quinta edição do MEXE cortesia ©Mayra Azzi
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Em 2015, milhares de alunos de mais de 200 escolas secundárias públicas de São Paulo tentavam fazer uma revolução. Ocupavam as suas escolas de dia e de noite, num acto de protesto e resistência contra o projecto de reorganização do ensino público do então governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin. Organizavam assembleias de autogestão e aulas com pensamento crítico, debatiam sobre sexualidade, feminismo, racismo, luta de classes. Dormiam juntos, cozinhavam, limpavam, dançavam baile funk. Eram ameaçados pela polícia, descredibilizados pelos governantes. Resistiam. Tornavam-se cidadãos de corpo inteiro.

Letícia Karen tinha 15 anos e estava lá, no meio disto tudo. “A gente só ficou sabendo do projecto de Geraldo Alckmin através do jornal. Até lá, nem os professores nem as classes estudantis sabiam de nada”, conta ao PÚBLICO. “Todos sabíamos que era um corte na educação pública, que não era para melhorar: para quê fechar escolas quando o que precisamos é de muitas mais?”. Este domingo, às 17h, Letícia e mais 15 colegas que participaram na chamada “Primavera Secundarista” levam à Escola Secundária Alexandre Herculano, no Porto, aquela que pode ser considerada a peça da vida deles: Quando Quebra Queima, um testemunho vivo e colectivo das ocupações e de um dos mais interessantes movimentos sociais da última década, que passou praticamente ao lado da imprensa portuguesa. Este grupo de estudantes que se tornou também numa companhia de teatro, a ColetivA Ocupação, é uma das presenças especiais da recta final da quinta edição do MEXE – Encontro Internacional de Arte e Comunidade. E não é por acaso que se apresentam na Escola Alexandre Herculano, onde nos últimos dias estiveram a orientar uma oficina: foi também o protesto dos estudantes desta escola que trouxe a público a urgência de fazer obras de reabilitação no edifício.

Esta mobilização estudantil em São Paulo arrancou com manifestações de rua, inicialmente apoiadas por entidades escolares e sindicatos de professores, mas que rapidamente se tornaram autónomas. “Começamos nós a organizar tudo porque vimos que algumas dessas entidades se aproveitavam dos nossos temas e não nos representavam”, contextualiza Letícia Karen. Entretanto, os estudantes perceberam que as manifestações não eram suficientes. Decidiram ocupar as escolas, inspirados pela Revolução dos Pinguins, movimento de alunos do secundário que aconteceu no Chile, em 2006. “Só numa semana já havia mais de 50 escolas ocupadas”, recorda Letícia.

As ocupações duraram dois meses, e em dois meses milhares de adolescentes brasileiros viveram e aprenderam o equivalente a muitos anos. “A rebelião cria um corpo novo”, dizem na performance, sangue a ferver, sobre uma história que ainda lhes atravessa intensamente os corpos escaldados e transformados pela luta. Foi um processo de autodescoberta. “Eu hoje tenho uma namorada e na época escondia para mim mesma o que sentia. O que criámos nas ocupações foi um espaço em que a gente se sentia bem para ser quem era de verdade”, diz Letícia. “A gente desconstruiu aquele ensino baseado na escola ditatorial e construiu junto outra coisa. Fomos descobrindo outras possibilidades de existência ali dentro, coisa que nunca tínhamos feito antes.”

No final de 2015, o movimento secundarista conduziu à suspensão do projecto de reorganização do ensino público paulista e à demissão de Herman Voorwald, o então secretário da Educação do estado de São Paulo. Mas ainda havia muitos problemas por resolver: as más condições das escolas, os salários em atraso das empregadas de limpeza e dos professores, as salas de aula superlotadas (40 a 50 alunos para um professor). “A gente costuma dizer que nós ocupamos as escolas não só porque elas iam fechar, mas por toda a precarização do ensino público”, nota Letícia.” A luta continua, e em 2016 os estudantes voltam à carga, juntando à lista de protestos questões como o desvio do dinheiro das merendas, os projectos de lei ligados ao movimento conservador e retrógrado Escola sem Partido e a reforma do ensino secundário anunciada pelo governo de Michel Temer. A mobilização estudantil alastra-se a várias cidades do país, com manifestações e mais de mil escolas e universidades públicas ocupadas.

É também nesse ano que a repressão policial aumenta. “Havia muita perseguição, eles já sabiam quem nós éramos. Havia, do nada, espancamentos na rua de companheiros nossos”, diz Letícia. “O ano de 2016 foi muito difícil para quem lutou em 2015.” Obrigados a desocupar as escolas devido um decreto-lei (e com a polícia à porta para os receber à saída), os estudantes estavam “muito afectados psicologicamente” e não sabiam “como continuar”. “A ColetivA Ocupação nasceu muito disso”, assinala Letícia. “A ocupação não era mais viável, então resolvemos continuar a resistir através da arte.”

O espectáculo Quando Quebra Queima, dirigido por Martha Kiss Perrone, encenadora que acompanha o grupo desde o início, surgiu na sequência da performance Só me convidem para uma revolução onde eu possa dançar, título-manifesto que continua a ressoar nesta criação mais recente do grupo: uma “dança-luta” com coreografias pulsantes e em trânsito livre, palavras cheias de urgência e insurgência, carinho como forma de fazer política, músicas de protesto e fotografias que os jovens levam a circular pelos espectadores.

Quando Quebra Queima é mais do que a anatomia de uma luta e mais do que um resumo de uma experiência impossível de resumir. Nada aqui está cristalizado na memória. “Queremos dizer que, mesmo tendo passado por tudo aquilo que passámos, coisas boas e coisas ruins, a gente continua viva e continua resistindo de outra maneira”, afirma Letícia — e isso talvez seja o grande resultado das ocupações. “O projecto de reorganização do ensino acabou por acontecer, de outra maneira, com outro nome, e as escolas continuam precarizadas, mas acho que o que conseguimos de verdade foi que os estudantes entendessem que têm voz”, considera a jovem de 19 anos. “Surgiram várias associações estudantis dentro das escolas, muitas direcções foram derrubadas e a gente recebe notificações de manifestações todos os dias. Criou-se uma rede de apoio a partir do movimento.”

Com o Governo de Jair Bolsonaro, as perspectivas são “as piores possíveis”, admite Letícia. Além dos cortes orçamentais na educação, há a censura. “Estão sendo recolhidos livros nas escolas por conterem conteúdo informativo sobre sexualidade e género.” Tudo isto continua a alimentar Quando Quebra Queima e o seu repertório de luta, num Brasil e num mundo em que os estudantes e os (muito) jovens são, cada vez mais, uma força-pilar dos movimentos sociais. “É ainda mais força que a gente tem para continuar a mostrar que existimos. É a força do ódio, sabe?”.

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