Vinte e uma mulheres assassinadas. Continuam a matar-nos

O femicídio não é, nem pode ser, simplificado através de números — e nem pode ser explicado com simulações que visam criar empatia ou familiaridade com as vítimas.

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Daniel Rocha

Vinte e uma mulheres assassinadas, em Portugal, desde o início deste ano. Escrevo o número por extenso na tentativa de o ampliar e demonstrar que é enorme. Penso que talvez não seja suficiente porque as palavras são demasiado pequenas e significam apenas um número. Talvez representado de uma outra forma se entenda melhor: †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †. Ou, melhor ainda, talvez se pedir às pessoas para que estas acrescentem a estes símbolos os nomes e os rostos das suas amigas, primas, tias, irmãs, mães, consiga mesmo fazê-las sentir-se horrorizadas.

Mas depois penso no quanto estou errada. O femicídio não é, nem pode ser, simplificado através de números — e nem pode ser explicado com simulações que visam criar empatia ou familiaridade com as vítimas. Num Estado de direito democrático, o assassinato de uma única mulher anónima deveria ser suficiente para perturbar toda uma sociedade e de a mover, no sentido de exigir uma resposta colectiva que acabasse com este crime hediondo. Mas não é.

Escreve-se cada vez mais sobre este tema, condenando o femicídio, debate-se no espaço público, procurando soluções, altera-se a legislação e, se questionarmos as várias entidades responsáveis, ficamos a saber que muitas medidas foram tomadas nos últimos tempos na Assembleia da República, na Procuradoria-Geral da República, nas esquadras das forças de segurança, nos serviços de saúde, nos tribunais, pelo que tudo passou a ser muito mais célere e a funcionar muito melhor. Aliás, “as leis agora estão de tal forma que as mulheres não têm motivo nenhum para se queixarem porque está tudo a favor delas”, ouve-se, constantemente dito por homens e mulheres. Apesar disso, continuam a matar-nos.

Deixamos de defender publicamente que as mulheres se devem submeter aos companheiros e aguentar tudo por causa dos filhos, para recriminar e repreender as mulheres que não abandonam, de imediato, um relacionamento abusivo. Mesmo assim, continuam a matar-nos: umas porque não se divorciam, outras porque se divorciaram. 

Condenamos as mulheres que não apresentam queixa, imediatamente a seguir ao primeiro abuso. Estimulamo-las a fazê-lo, para a sua própria segurança. Quando o fazem, responsabilizamo-las pela violência de que são vítimas, afastando-as das suas casas, das suas famílias, dos seus trabalhos, deixando os agressores a viver as suas vidas, com uma total liberdade de movimentos. Continuamos a acreditar ou a fingir que acreditamos, que podemos proteger as mulheres sem reprimir os seus agressores. E, por isso, continuam a matar-nos, porque são livres de o fazer.

Continuam a matar-nos porque somos mulheres e o assassinato de uma mulher não é um caso isolado, é a consequência de uma série de processos sociais que tem como objectivo a opressão e o controle das mulheres no sistema patriarcal, ou seja, é o ponto final, o último acto que garante que estas não questionam e não se opõem à ordem patriarcal.

Damos luta, revoltamo-nos, organizamos manifestações, marchas, vigílias, nas quais gritamos indignadas, com raiva, “Nem mais uma!”, e continuam a matar-nos. Dizemos: “Basta, parem de matar-nos!”, escrevemos textos confusos em que ora nos colocamos no papel de membro de uma sociedade que continua a matar mulheres, ora somos as vítimas que continuam a matar. 

Pensamos nas medidas que podem, efectivamente, proteger-nos do femicídio: investimento na educação sobre relacionamentos e igualdade de género, rede de instituições especializadas em femicídio, programas de apoio a sobreviventes, programas de repressão e punição dos agressores. Observamos que já outros pensaram nestas medidas e que algumas até já se encontram em vigor e continuam a matar-nos. E hoje sentimo-nos derrotadas, mas amanhã continuaremos na luta! 

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