Mãe, o planeta chora?

Estamos na Semana Europeia da Mobilidade, a de 2019, e aquela escola, que foi a minha há 40 anos, num tempo em que todos caminhávamos até lá, ganhou, por estes dias, um bicicletário, que nós estreámos. Está meio escondido, vazio ainda, mas é um primeiro sinal, tímido, de uma mudança que nos chega mais devagar do que deveria.

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Ines Fernandes

Foi há um ano. Semana Europeia da Mobilidade, vésperas do Dia Europeu sem Carros. O velhinho utilitário lá de casa seguiu para abate e, em sua substituição, chegou uma bicicleta. Houve quem questionasse se, reduzidos a um automóvel apenas, estávamos em dificuldades económicas. Quem nos conhecia melhor, percebeu a opção — instigada pela dona do “utilitário”, que podia, mas não quis, gastar dinheiro num carro novo para o ter parado, 90% do tempo, numa estação de metro ou na garagem lá de casa. 

Agradeço à Helena aquele desafio que mudou as nossas vidas. Passados 12 meses, com dias de frio e de calor, de muito sol e chuva, já fizemos 2500 quilómetros com a bicicleta que comprámos — que é eléctrica, o que recomendo a qualquer pessoa com deficiência motora, como eu, ou com outra debilidade que impeça o uso de uma bicla convencional. O outro automóvel lá de casa vai ganhando pó, após a chegada de uma segunda bicicleta “normal” para os adultos, de uma outra para a filha mais velha e da cadeirinha que faz a delícia da mais nova. Que agora, com a autoridade dos seus três anos, embirra se optamos pelo carro nas nossas deslocações quotidianas. 

Gostava muito que vissem a alegria da Madalena, no primeiro dia de infantário, a chegar à escola no seu trono ambulante. Gostava que vissem o olhar de espanto dos miúdos do primeiro ciclo, ao ver aquela família de hábitos estranhos aos seus. Alguns chegam a pé e ainda bem. Mas muitos chegam de carro — mesmo, às vezes, morando a menos, muito menos, de dois quilómetros dali —, como se percebe pelo trânsito parado e pelo frenesim impaciente das buzinas a sobreporem-se ao toque de entrada. Se lhes perguntássemos, muitos diriam sim a uma divertida viagem em duas rodas. Mas, porque não podem, ou porque não pensam nisso sequer, ninguém lhes pergunta.

Estamos na Semana Europeia da Mobilidade, a de 2019, e aquela escola, que foi a minha há 40 anos, num tempo em que todos caminhávamos até lá, ganhou, por estes dias, um bicicletário, que nós estreámos. Está meio escondido, vazio ainda, mas é um primeiro sinal, tímido, de uma mudança que nos chega mais devagar do que deveria. A semana em que a Europa celebra os modos de deslocação suaves e activos, e em que somos lembrados da importância disso para a segurança das nossas cidades e para a urgente tarefa de controlo das alterações climáticas, dado o impacto das emissões do sector dos transportes, coincide, em 2019, com uma cimeira da ONU para avaliar o caminho feito desde o Acordo de Paris e para acelerar o passo dos vários países nesta corrida contra o tempo. 

Li por estes dias no meu jornal que o país precisa de 85 mil milhões de euros para cumprir o desafio da neutralidade carbónica em 2050. Li que parte desse investimento virá de famílias e de empresas, ou seja, de quem produz bens e serviços e de quem os consome. Mas não li, e podia ter lido, que, nalguns casos, desinvestir, não gastar, pode ser uma solução. Eu sei que continuamos a falar de “crescimento sustentável”, mas duvido, face ao que vou lendo em múltiplos relatórios, que seja possível continuar a usar as duas palavras, crescimento e sustentável, assim juntas, sem um pensamento crítico. 

Há partes do globo, e centenas de milhões de pessoas, que precisam desesperadamente de beneficiar de alguma de toda essa riqueza que se produz, para saírem da pobreza a que estão remetidas. Mas muitos de nós — e aqui incluo-me eu, de livre vontade — precisam de seguir outro caminho. Não o caminho do empobrecimento imposto pelas “troikas” deste mundo, mas um caminho de ajustamento das expectativas e das necessidades (quantas artificialmente criadas) àquilo que o planeta nos pode dar. 

No momento em que começou a falar, a Madalena aprendeu, com a mãe, que se gastar demasiada água a lavar os dentes, ou a tomar banho, “o planeta chora”. Ela não sabe o que é o dinheiro, nem entende, por isso, o benefício económico de poupar água, mas entende que a água, como as árvores e o grande mar que aprendeu a apreciar, fazem parte do mundo em que vive. Ela não gosta de ver tristeza em quem quer que seja  e já a vi questionar o efeito do lixo no chão, sempre com aquela pergunta: “Mãe, e o planeta chora?” Esta semana, quando levávamos com o fumo de uns carros, ela ouviu o meu queixume e repetiu a interpelação. 

Percebi, com a paternidade, que nos falta essa ingenuidade, essa ligação umbilical à terra (em letras maiúsculas e minúsculas), que o racionalismo, advento do Antropoceno, tratou de cortar. Percebi que, racionalmente, temos de recuperar algo dessa relação. Não é fácil, num mundo em que somos cidadãos — e ainda por cima abstencionistas, muitos de nós — de quatro em quatro anos, e consumidores a tempo inteiro. 

Nunca será fácil, enquanto nos continuarem a oferecer bens para lá do que precisamos, por preços que escondem tragédias ambientais e a exploração de milhões noutra parte do mundo, e nos continuarem a dificultar o acesso ao que verdadeiramente necessitamos, como, por exemplo, uma habitação decente a um preço razoável, num lugar que não implique horas perdidas dentro de um carro entre casa e o trabalho. Acredito que, antes de arranjarmos o “clima” — se é que isso ainda é possível! —, teremos de “arranjar” o capitalismo. Se é que isso é possível! Arranjados os dois, talvez o planeta nos aceite. 

Sabendo que as minhas filhas correm o risco de viver num ambiente mais inóspito do que o que temos agora, só posso sentir-me feliz por ver como reagimos ao desafio da mãe. Enquanto a Raquel, com 11 anos, exulta perante a autonomia que a bicicleta lhe dá — “gosto muito desta nova rotina”, disse-me esta quinta-feira, no caminho para casa —, a Madalena faz as viagens cantando, como nunca a vi fazer dentro do nosso automóvel. E essa felicidade com tão pequenas coisas que, ainda assim, nos pouparam uma centenas de quilos de emissões de CO2 e de outros poluentes, compensa a incompreensão de muitos com quem partilhamos a estrada e a angústia de percebermos o quanto temos sido incapazes — e aqui refiro-me a todos — de mudar o que for preciso, e rapidamente, para lhes garantir um futuro menos sombrio.

Dizem-nos que as nossas acções individuais de nada adiantam. Mas eu sou dos que crê que, neste caso, há mais do que duas pequenas letras a separar o atavismo dos que fazem tudo para manter tudo como está, do activismo responsável, informado, que o momento exige. Não sei se chegaremos a tempo. Mas, por elas, vale a pena continuar a acreditar. 

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