André Gonçalves Pereira ou a inteligência como virtude

Para André Gonçalves Pereira, a inteligência postulava a independência e a independência exponenciava a inteligência.

1. André Gonçalves Pereira era carismático, um homem de carisma e de carismas. Distinguiu-se cedo por uma fulgurante carreira académica, assente nas três marcas de água da sua personalidade: a excepcional capacidade intelectual, a formação cultural inabarcável e o sentido do realismo e do pragmatismo. À excelência da investigação somava-se uma enorme aptidão pedagógica, uma impecável vocação discursiva. Com efeito, era um excelente professor e um orador eloquente, mas – como em tantos outros domínios – totalmente fora dos habituais cânones lusos. Primava pelas fórmulas concisas, precisas e directas. Ele não se demorava, era invulgarmente breve e sucinto. No seu discurso, nunca havia uma palavra a mais e nunca havia uma ideia a menos. Em frases enxutas e sonoras, temperadas e apimentadas por um fino sentido de humor, estava tudo dito e nada ficava por dizer. Qualquer explicação ou tomada de posição, nos mais diversos ambientes, era sempre colorida por uma petite histoire, cheia de sabor e de graça, normalmente tirada da sua inesgotável experiência. A historieta fazia pedagogia, lançava pontes e amarras para os interlocutores e amaciava a exigência e o rigor das fórmulas contidas e concisas. À elegância e economia do verbo correspondia uma omnipresente vontade de ir directo e sem rodeios à essência dos assuntos, sem contemporizações nem concessões. A sua frontalidade era lendária e nela, ao invés do que temiam muitos habitués de corredores e de salões, não intercedia hostilidade nem insensibilidade. No dia seguinte a uma reunião dura e seca, vinha sempre um cumprimento interessado e um gesto elegante. Havia apenas o imperativo da honestidade, da decência e da lealdade. O seu saber enciclopédico em nada o impedia de reconhecer a qualidade dos outros e de os cumprimentar quando, em ocasiões muito contadas, o venciam ou convenciam em algum argumento. Apesar da impaciência para com os atrasos e os floreados lusitanos, ou talvez por causa dela, o seu discurso e a sua atitude inscreviam-se na ordem da fleuma britânica. Até na irritação ou na impertinência, exalava charme e classe.  

André Gonçalves Pereira foi um dos mentores e construtores da advocacia moderna e cosmopolita em Portugal. Até ao 25 de Abril, lembrava-o tantas vezes, teve apenas clientes estrangeiros, para poder manter uma prudente distância do regime. Com ele trabalharam nomes tão importantes para a cultura e advocacia como Francisco Balsemão (o amigo que sempre invocava), Morais Leitão, Vieira da Almeida (fundadores de duas das maiores sociedades portuguesas) e depois, na ampliação da sua sociedade, Manuel Castelo Branco. Nunca escondeu que o seu modelo dos anos 70, ainda que incompatível com a evolução entretanto ocorrida, era o que mais lhe agradava, por o dotar da máxima independência que tanto prezava.

2. Se há qualidades que os que tiveram privilégio de o conhecer e conviver invariavelmente lhe atribuem são a inteligência e a independência. De um lado, a inteligência vertida em lucidez e discernimento; do outro, a independência declinada em liberdade e frontalidade. Para André Gonçalves Pereira – ou talvez melhor, em André Gonçalves Pereira –, a inteligência postulava a independência e a independência exponenciava a inteligência. Era justamente esta relação de implicação intensiva que o tornava absolutamente singular. Para o comum dos mortais, a independência é um valor, um ethos, uma virtude; já a inteligência não passa de uma característica, de uma qualidade, de um atributo. A independência resulta de uma escolha moral, do cultivo constante e vigilante do sujeito, do mérito e do esforço pessoal. E, por isso mesmo, a independência consubstancia uma virtude. A inteligência, por sua vez, decorre dos caprichos biológicos e, porventura, muito à Ortega y Gasset, da circunstância formativa e educativa de cada qual. Mas, também por isto e tal como a beleza, ela é vista como uma qualidade inata, susceptível de estimulação e aprimoramento, mas sem um lastro e sem um desígnio ético.

“Em” André Gonçalves Pereira, as coisas não se passavam assim, não se gizavam assim, não eram assim afinal. Nele e para ele, a inteligência não era um dado, um adquirido, um dom. Era naturalmente isso, mas era, tinha de ser e acabava por ser muito mais do que isso. Porque profundamente imbricada com uma assunção interior de independência, insubmissão e liberdade, a inteligência alçava-se à condição de virtude. A inteligência não consubstanciava um dom neutro, indiferentemente mobilizável para o bem e o mal, para o verdadeiro e o falso, para o justo e o injusto, para o belo e para o feio. A inteligência era um bem. E, sendo um bem, não era um mal. Não devia nem podia ser um mal. Um bem que tendia para o bem, o justo, o verdadeiro, o belo. Esta concepção, percepção e vivência (ou até “vida”) da inteligência projectava-se medularmente no mundo dos afectos, nas curvas distendidas ou apertadas da amizade e do amor. Muito significativamente, foi a André Gonçalves Pereira que ouvi uma das mais desconcertantes e perfurantes definições – melhor fora dizer “intuições” ou “intelecções” – do amor: “o amor é um acto de inteligência”. Eis uma “definição” que talvez diga mais sobre a inteligência do que sobre o amor. Para ele, a inteligência – vertida nas tais frases cortantes e lapidares – era também o veículo da afeição, da amizade, da sedução, do amor. Esses afectos da inteligência ou inteligência dos afectos são também da ordem da virtude. A Laura, sua mulher, aflorava em todas as conversas. Não por acaso ou acidente, repetiu tantas vezes que o casamento fora o seu acto mais inteligente. Essa virtude da inteligência, assim entendida ou intuída, era também uma declaração de amor à Laura. Para a Laura, um beijo triste.

NÃO. Ataque a instalações petrolíferas. Os ataques às refinarias sauditas são extremamente preocupantes e denotam uma perigosa escalada nos vários conflitos que assolam o Oriente Médio.

NÃO. Ministro da Educação. A abertura das aulas está a ser marcada, em vários pontos do país, por fechos e adiamentos por falta de condições mínimas. No ensino como na saúde, as falhas sucedem-se.

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