A irresistível atração pelos concursos com fotografia

Está enraizado na cabeça de muitos portugueses, e em particular na classe político-sindical, que os concursos são uma burocracia inconveniente que se deve “contornar”.

Surgiu há uns dias no Diário da República uma lei surpreendente: o Decreto-Lei 122/2019, de 23 de agosto, que cria concursos com fotografia para “resolver” a situação de cerca de 60 leitores das universidades públicas portuguesas que estavam sem poder renovar o contrato.

Os leitores são professores contratados para ensinar línguas estrangeiras, tipicamente falantes nativos dessas línguas. São escolhidos por convite, sem concurso, e os seus contratos são sempre a termo. A revisão de 2009 do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) veio introduzir um limite máximo aos contratos a tempo inteiro: quatro anos. Este limite não existia antes, pelo que em 2009 havia leitores que já davam aulas há muitos anos, mas, estando a aproximar-se do final da sua carreira profissional, viam com muita dificuldade arranjar outro emprego. É este problema que o Decreto-Lei 122/2019 pretende solucionar. Clarifico que concordo que se encontre uma solução para estes leitores, o que pode ser feito de forma muito simples: permitir que possam renovar o contrato para além do limite de quatro anos introduzido na revisão de 2009 do ECDU.

O caminho que o Governo escolheu foi, ao invés, obrigar as instituições a abrir concursos com fotografia para a carreira docente universitária. São concursos muito aconchegados, pois só os leitores em causa podem concorrer, o número de vagas é igual ao número desses leitores, e os critérios de escolha são afeiçoados: enquanto o ECDU diz, corretamente, que um docente universitário ensina e investiga, pelo que a avaliação num concurso normal é feita nestas duas perspetivas, nestes concursos “especiais” a investigação é afastada, apenas sendo avaliada a atividade de ensino, pois muitos dos leitores não fazem investigação relevante.

Como uma boa parte dos leitores não tem doutoramento, os concursos são em dois momentos. Para os que têm doutoramento, o concurso tem de ser aberto este ano. Aos que não têm doutoramento são dados seis anos para o obter, tendo depois as instituições de abrir concursos com fotografia.

Esta passagem administrativa a professor auxiliar é salarialmente muito interessante para os leitores. Enquanto um leitor recebe um vencimento igual ao de um assistente universitário, um professor auxiliar ganha cerca de 40% mais, um aumento tipicamente de 900 euros por mês.

Este tratamento de privilégio aos leitores é muito difícil de explicar. Que outro grupo profissional tem direito a concursos com fotografia, sem ter de cumprir todos os critérios de acesso à nova categoria, onde têm um aumento salarial de 40%? Se o aumento se deve a obterem o doutoramento, porque são tratados de forma preferencial em relação aos milhares de pessoas com doutoramento, muitos deles brilhantes, que, mesmo que sejam da mesma área científica destes leitores, não vão sequer poder concorrer a estes concursos? Os leitores que, legitimamente, queiram ingressar na carreira docente universitária, devem concorrer a concursos verdadeiros, abertos a todos, em pé de igualdade com todos os outros candidatos.

Como o dinheiro não cresce nas árvores, a passadeira vermelha estendida a estes leitores vai impedir que se abram concursos verdadeiros a que tantos jovens excecionais se poderiam candidatar. Jovens que estão no desemprego, ou com ocupações precárias, e assim vão continuar. É o conhecido corporativismo dos sindicatos: quer a Fenprof quer o Snesup não vêm qualquer problema em concursos com fotografia e aplaudem a solução negociada com o Governo.

É terrível a facilidade com que se legislam concursos com fotografia. Mostra como está enraizado na cabeça de muitos portugueses, e em particular na classe político-sindical, que os concursos são uma burocracia inconveniente que se deve “contornar”, pois as escolhas são feitas por outras razões, sob a forma de compadrios diversos para aceder a lugares. Este é um dos mais graves problemas da sociedade portuguesa, pois os concursos de admissão de pessoal são algo de decisivo, quer para a organização onde a pessoa vai trabalhar, quer para o reforço do elevador social que é um elemento indispensável de qualquer sociedade saudável. Os compadrios só por acaso selecionam pessoas competentes; quem injeta continuamente pessoas sem competência na administração pública não pode vir reclamar que o Estado funcione bem.

Com concursos a sério, em que todos podem concorrer e se escolhe o mais competente, reforça-se o elevador social. Todos saberão que, seja qual for o grupo social a que pertençam, se trabalharem afincadamente irão ter os seus méritos reconhecidos. Podem ter esperança no futuro. Uma sociedade sem esperança é uma sociedade doente, em declínio.

O Decreto-Lei 122/2019 é mais um triste exemplo daquele conjunto de pequenas decisões que, passo a passo, reforçam no dia-a-dia o sistema de compadrio que corrói a administração pública portuguesa. Nunca seremos verdadeiramente competitivos em termos internacionais com medidas como esta. É esta a política de pessoal para o Ensino Superior deste Governo?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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