Pátios, quartos e luz: como a arquitectura das novas prisões pode dignificar quem lá vive

Nas novas prisões do Montijo e de Ponta Delgada não vão existir celas: “Há vidros mais fortes do que o ferro.” Os desenhos mostram prisões mais abertas, confortáveis e humanas, que privam os seus habitantes da liberdade — nada mais. Querem “garantir uma perspectiva sã dos direitos humanos” e uma reinserção mais natural.

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Desenhar as novas prisões do Montijo e de Ponta Delgada foi um “quebra-cabeças”. E para o resolver é preciso recuar no tempo: “Desde os primórdios até meados do século XX — ainda que com evoluções —, as prisões foram pensadas como locais de isolamento e castigo.” Não havia “qualquer propósito de regeneração” ou reintegração pensado para ajudar quem por lá passa, descreve Jorge Mealha, o arquitecto responsável pelo desenho das novas prisões.

Ainda que, a partir de meados do século XX, a evolução “da perspectiva sobre os direitos humanos” tenha feito com que as prisões começassem a ser pensadas em conjunto com a educação e saúde, as prisões portuguesas estão desactualizadas. “O parque penitenciário português conta com edificações concebidas e pensadas há mais de 60 anos, destinadas ao acolhimento dos reclusos gerados pela sociedade portuguesa em meados do século passado, com problemas totalmente distintos dos de hoje”, contextualiza Joaquim Rodrigues, presidente do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça (IGFEJ). E a distância temporal que separa as construções das necessidades actuais provoca “manifestos desajustes”, que potenciam “dificuldades acrescidas aos Serviços Prisionais e que se reflectem com evidência nas evasões, na reincidência, no insucesso da formação profissional e no ensino ou cuidados médicos prestados”.

Mas a prisão é “mais útil” se as pessoas que lá habitam forem capazes de se integrar quando de lá saem. Surge, por isso, a necessidade de actualizar estas edificações, habitadas por uma população “relativamente jovem e pouco preparada social e profissionalmente, maioritariamente destinada a funcionar em ciclos de condenações sucessivas”, avalia Jorge Mealha. É uma equipa de nove investigadores da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL), sob orientação de Jorge Mealha e do arquitecto paisagista Jorge Cancela, que, a convite do IGFEJ, se encarrega de conceber um novo desenho para as prisões. A parceria resulta da “escassez de capital humano em áreas de elevada especialização da administração pública”, explica Joaquim Rodrigues.

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O “quebra-cabeças” surgiu da “procura de soluções que respondessem ao programa”: estabelecimentos prisionais que, ao mesmo tempo, tivessem em conta “valores contemporâneos face à dignidade e direitos humanos, especificidade cultural, economia, segurança e ambiente”. O resultado? Prisões mais humanas, mais confortáveis, mais abertas e iluminadas, onde o pressuposto é o de que “a privação da liberdade e a disciplina de um estabelecimento prisional é, em si, uma punição muito dura” e deve, por isso, ser “o único direito humano retirado ao indivíduo que entra num sistema prisional”. Todos os outros direitos, nomeadamente a “dignidade e privacidade”, devem ser preservados.

Com claras influências das prisões nórdicas, as novas prisões propõem então uma “mudança de paradigma”. O seu desenho mostra fluidez espacial, espaços verdes, cor. Estão previstos campos de jogos e “contacto visual e físico com elementos naturais”, o que deverá significar um “aumento de equilíbrio emocional”, prevê Joaquim Rodrigues.

Ao contrário das nórdicas, que funcionam como um campus, a FAUL projectou uma espécie de “pequeno aglomerado urbano ou uma pequena vila”: “Como se tivesse dois largos, duas ruas (uma principal e uma secundária) e um conjunto de pátios.” No estabelecimento prisional de Ponta Delgada prevê-se a existência de quatro pátios (numa área exterior de 41 mil metros quadrados), e para o Montijo estão projectados seis pátios e uma área destinada ao cultivo de vegetais ou outras actividades ao ar livre, inseridos numa área exterior de 64 mil metros quadrados.

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“Vidros mais resistentes do que o ferro”

Além do vasto espaço exterior, estas prisões não vão ter grades: “Há vidros mais resistentes do que o ferro”, atira Jorge Mealha. O desaparecimento destes “impedimentos físicos permite transformar completamente o paradigma do que é uma prisão”, normalmente com “um aspecto estigmatizante, cheia de grades e extremamente austera”. Agora, o aspecto destas deverá aproximar-se “daquilo que é uma escola ou um hospital”. E a mudança de cenário pode ser determinante na redução do stress e da agressividade de quem lá vive.

Ao contrário do que se possa pensar, a ausência de grades não põe em causa a segurança do estabelecimento prisional: na verdade, a solução arquitectónica encontrada, “muito racional”, permite “a rentabilização dos guardas prisionais, através de soluções que possibilitam uma maior visibilidade sobre as áreas de circulação, sem curvas ou pontos mortos, que facilitam a vigilância e o controlo dos espaços interiores e exteriores”, explica Joaquim Rodrigues. A ideia é, além de melhorar a habitabilidade dos reclusos, melhorar também as condições de trabalho dos funcionários que, “na sua generalidade, passam mais tempo no estabelecimento prisional do que a maioria dos reclusos”.

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A organização do espaço deverá mudar. O novo modelo prevê a criação de três zonas distintas: a primeira e a segunda destinam-se a serviços administrativos, zonas de contacto com pessoas vindas do exterior, serviços médicos, bloco escolar, cozinha, lavandaria, entre outros espaços “essenciais ao funcionamento da prisão”.

Na terceira zona encontram-se as “unidades de alojamento”, cada uma das quais a funcionar “de forma autónoma” e com uma lotação aproximada de 80 a 100 reclusos. As celas — ou quartos — terão entre dez e 12 metros quadrados (actualmente, as celas têm em média seis metros quadrados), sendo que “a sua ocupação deve ser primordialmente individual”, de forma a preservar a intimidade e individualidade. Além do “mobiliário fixo integrado na própria construção” — que permite melhorar a “habitabilidade e a qualidade espacial” —, cada quarto vai ter instalação sanitária.

As novas prisões são também mais sustentáveis. O IGFEJ afirma que “deverão permitir a diminuição do consumo de energia com origem em combustíveis fósseis”, utilizando energias alternativas como a solar térmica e geotérmica, painéis fotovoltaicos e utilização da água da chuva para lavagens e rega no exterior.

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Somadas as alterações, estamos perante uma revolução de espaço que pode ser determinante na reabilitação “social e profissional do indivíduo”, permitindo que tenham “disponibilidade para novas perspectivas” que podem ser adquiridas nas áreas reservadas para a “educação, formação profissional e mesmo trabalho remunerado em oficinas com parcerias com entidades externas”.

O resultado da equação pode significar uma mudança radical na forma como a prisão é percepcionada pela sociedade: deixa de ser um castigo, passa a ser uma reabilitação. Estamos preparados para esta mudança? “Estamos a chegar lá.” Afinal, o objectivo não é mais do que este: “Garantir uma perspectiva sã dos direitos humanos” e providenciar meios de reorientação a quem lá passa. “Com dignidade.

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