Uma questão de democracia

O que os acontecimentos políticos recentes têm revelado é que a democracia liberal é um regime frágil – exige continuamente o nosso respeito pelos seus princípios.

O cerne da democracia liberal reside numa dimensão basilar do espírito moderno que foi amadurecendo desde as revoluções liberais e dando forma ao constitucionalismo ocidental: a ideia de pluralismo político. Curiosamente, este pluralismo político resultou das lutas religiosas que assolaram a Europa nos séculos XVI e XVII e que levaram a que os pensadores políticos da altura invocassem os ideais de tolerância e liberdade de consciência religiosa (destacam-se aqui os contributos de John Locke e, no século seguinte, dos Founding Fathers norte-americanos). Estes ideais conduziram, por sua vez, à liberdade de consciência política que se foi traduzindo no pluralismo de entendimento quanto à organização do Estado, às leis a adotar, à configuração da ideia de justo e bom para cada sociedade. E é isto que designamos hoje por ideologias políticas específicas. Como nota João Cardoso Rosas em Ideologias Políticas Contemporâneas, “aquilo que os regimes constitucionais modernos trazem consigo é uma espécie de establishment do pluralismo ideológico”. O espírito moderno assenta na ideia de que não há uma Visão Única sobre o Bem e que, por essa razão, os regimes políticos devem refletir a possibilidade de divergir e estar em desacordo quanto às políticas a adotar.

Ora, o regime democrático foi precisamente o regime político que permitiu dar forma a esse pluralismo. De acordo com o espírito democrático, não há uma Visão Única que deva ou possa ser imposta – pelo contrário, as diferentes perspetivas sobre o que é correto e justo devem ser debatidas no espaço público e político. Em democracia, o desentendimento e o desacordo, a discussão e o debate são fundamentais e a ação política deve refletir essa troca de argumentos e a construção de consensos.

Reside aqui a razão pela qual muitos se opuseram e opõem (em especial, à esquerda) à ideia popularizada por Margaret Thatcher de que, em sociedades livres e democráticas, as políticas económicas devem seguir princípios de mercado livre. A expressão em língua inglesa TINA (There Is No Alternative) veicula a ideia de que este é o único caminho possível pelo que, em bom rigor, não está sujeito a discussão política. Em Portugal, encontramos esse vocabulário nos defensores das políticas de austeridade durante o período troika (como João Miguel Tavares, entre outros, expressou recorrentemente nas páginas do PÚBLICO). No entanto, contra a ideia de que não haveria alternativa, afirmou-se, das colunas dos jornais às redes sociais e manifestações na rua, que a democracia assenta de modo essencial na possibilidade de visões diferentes e perspetivas contrárias sobre os mesmos assuntos. O apelo à noção de que não há alternativa visaria somente manipular a opinião pública para criar consenso político em torno das políticas de austeridade. Afinal, o efeito provocado pelas Visões Únicas é a de revelar aqueles que as contestam como “incapazes de compreender a realidade” e “estando objetivamente errados”.

Recorro a este período político específico para desafiar um argumento que tem sido utilizado na recente polémica sobre as políticas de género. Na verdade, acredito que a atual ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, se colocou ao lado daqueles que, durante o período troika, defenderam que as posições políticas decorrem de diferentes, válidas e legítimas visões sobre o mundo e a realidade. E terá concordado com a ideia de que, sendo todas as posições políticas irremediavelmente ideológicas, elas não devem nem podem fugir à discussão política e ao confronto com ideias diferentes. E de certeza se posicionou contra a ideia de que há certas políticas que se podem impor verticalmente por significarem um acesso privilegiado à verdade, afastando as opiniões diferentes por estarem objetivamente erradas. E também contra a ideia de que a política é um debate entre bons e maus, entre aqueles que têm um bom coração e aqueles que são naturalmente maldosos. E certamente esteve ao lado daqueles que defenderam que os debates em democracia devem debruçar-se sobre ideias e argumentos e seus méritos, ao invés de acusar a parte contrária de ignorância ou demonização só porque defendem ideias diferentes.

Causou, por isso, espanto o artigo publicado no PÚBLICO dedicado ao Despacho n.º 7247/2019, que visa estabelecer as medidas administrativas para implementação do previsto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (respeitante ao direito à autodeterminação da identidade e expressão de género). Nesse artigo, Mariana Vieira da Silva faz a defesa do diploma recorrendo à formulação de que “não se trata de ideologia, mas de humanidade”. É um uso engenhoso da linguagem que não foi, certamente, acidental. Sabemos hoje bem que as palavras não são apenas palavras e que o uso hábil da linguagem é fundamental na política (facto recordado constantemente por Pacheco Pereira). Neste caso, a consequência que decorre daquela formulação é a de afirmar que aqueles que se opõem a esta política do governo são desumanos pelo que a sua opinião deve ser imediatamente descartada – uma astuta estratégia de desvalorização da opinião contrária por demonização. Ora, independentemente das nossas convicções pessoais quanto ao assunto – e ainda mais quanto ao modo como o CDS assumiu posição –, uma coisa é certa: num Estado democrático, todas as decisões políticas são discutíveis e nada deve e pode ser imposto com recurso ao afastamento da posição contrária simplesmente por ser contrária. Acresce que é especialmente importante que este tema não seja naturalizado sob a capa de posição não-ideológica, na medida em que, para além de existirem bons e válidos argumentos (para lá de casas de banho) a partir dos quais deve ser discutido (como Alexandre Franco de Sá e Pedro Afonso, entre outros, demonstraram), adotar medidas deste género sem a devida discussão pode gerar efeitos perniciosos, como acontece já em várias democracias ocidentais.

Aliás, o que os acontecimentos políticos recentes têm revelado é que a democracia liberal é um regime frágil – exige continuamente o nosso respeito pelos seus princípios. E parte desse respeito passa por reconhecermos a legitimidade das posições contrárias e estarmos dispostos a discutir a nossa posição confrontando-a com esses argumentos, ao invés de querer impor a nossa vontade por apelo à demonização do adversário. Trata-se, afinal de contas, de uma questão de democracia.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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