Casa da Música conta a história da música com M de mulher

Sete concertos e uma conferência compõem o programa de um festival inédito, que entre 14 e 29 de Setembro quer resgatar os sons e a memória de nove séculos de história – numa instituição cuja história tem sido esmagadoramente masculina.

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Joana Carneiro, maestrina; Ana Madalena Ribeiro, chefe de naipe dos segundos violinos da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música; Ângela da Ponte, compositora Paulo Pimenta
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Joana Carneiro tem tido uma bem-sucedida carreira como maestrina, dentro e fora de Portugal Paulo Pimenta
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Raquel Couto dirige o Coro Infantil da Casa da Música, formação em que o número de rapariga excedem largamente o de rapazes Paulo Pimenta
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Ângela da Ponte já foi a jovem compositora portuguesa em residência da Casa da Música, em 2011 Paulo Pimenta
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Ana Madalena Ribeiro, de apenas 29 anos, chefia o naipe dos segundos violinos da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música Paulo Pimenta

Entre Hildegard von Bingen (1098-1179), a monja benedita germânica que é considerada a primeira mulher compositora da história da música ocidental, e que ficou mesmo conhecida como “a sibila do Reno”, e Ângela da Ponte (Ponta Delgada, 1984), a compositora açoriana que por estes dias estreará uma peça que lhe foi encomendada para o Remix Ensemble, State of(f) emergencies, há nove séculos de música no feminino que a Casa da Música vai resgatar e dar a ouvir nas duas próximas semanas, deste sábado ao próximo dia 29.

Alinhando-se com um dos tópicos dos nossos dias, mas ligando-o à sua actividade regular, a instituição programou um festival inédito, Música no Feminino. O programa, que inclui sete concertos, abre com uma conferência sobre o lugar da mulher no mundo da música, a partir da pergunta-provocação A mulher é o futuro do homem? – à qual irão responder a maestrina Joana Carneiro, a pianista e ex-ministra da Cultura Gabriela Canavilhas e a deputada Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda), com moderação de António Jorge Pacheco (Sala 2,dia 14, às 16h).

Houve um tempo em que o director artístico da Casa acreditou que a qualidade e o mérito eram argumentos suficientes para a conquista de um lugar nos grandes palcos, independentemente do género. “Mas a experiência fez-me mudar a minha perspectiva: o mérito não basta para mudar as coisas, os preconceitos vêm de trás, da história”, justifica António Jorge Pacheco, elogiando as medidas de discriminação positiva que os países escandinavos lançaram nas duas últimas décadas, com resultados visíveis. Também em Portugal já foram introduzidas quotas de género na política (2016) e na economia (2018).

O concerto inaugural do festival, cujo alinhamento é (quase) exclusivamente preenchido por compositoras, solistas e maestrinas, põe Joana Carneiro a dirigir a Orquestra Sinfónica do Porto num programa em que avulta a estreia portuguesa da peça Ciel d’hiver, da finlandesa Kaija Saariaho (Compositora em Residência na Casa da Música em 2010), e inclui também uma obra de Clotilde Rosa (1930-2017), Ricercari (Sala Suggia, dia 14, às 18h).

“Durante séculos, a composição e a direcção, em particular, foram actividades exclusivamente masculinas”, lembra Pacheco. Uma situação que tem vindo a mudar, também em Portugal, mesmo se no domínio da direcção de orquestra Joana Carneiro seja ainda um caso singular.

“Na minha carreira, ser mulher tem sido irrelevante; tenho-me sentido sempre muito bem-vinda em todas as orquestras com que tenho trabalhado”, disse ao PÚBLICO, no intervalo de um ensaio na Casa da Música, a maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, cujo mandato acaba de ser renovado. Evocando ainda a sua experiência, Joana Carneiro explica que, “no contexto social em geral”, lhe tem sido “mais difícil ser mãe” – foi recentemente mãe de quatro filhos, no espaço de 15 meses. Ressalva que em Portugal se tem sentido “muito bem nesse universo de ser mãe”: “Mas no estrangeiro já sinto algum desconforto”, nota.

A maestrina sublinha que, no entanto, há ainda “um longo caminho a percorrer” no que diz respeito ao acesso das mulheres às orquestras, e em particular aos cargos de direcção. “Mas há já algumas mulheres em Portugal que começam a fazer carreira” neste posto, refere, citando o caso de Rita Blanco, a estudar em Manchester, “uma pessoa com muito talento e que terá uma carreira muito bonita”.

"Estado de emergência"

No universo das estruturas residentes da própria Casa da Música, apenas duas mulheres têm actualmente cargos de direcção: Raquel Couto, à frente do Coro Infantil; e Ana Madalena Ribeiro, que chefia o naipe dos segundos violinos da Sinfónica. Nos seus 14 anos de actividade (mais se recuarmos ao tempo em que o projecto não estava ainda instalado no edifício de Rem Koolhaas), a instituição nunca teve uma presidente do conselho de administração, uma directora artística ou uma maestrina titular. A percentagem de mulheres varia entre os diminutos 7% do Remix Ensemble e os esmagadores 79% do Coro Infantil; o Coro, com 53% de mulheres, a Orquestra Barroca, com 47%, e a Orquestra Sinfónica, com 25%, situam-se entre os dois extremos.

“Nunca me senti discriminada por ser mulher; de resto, no meu caso, terá pesado mais a idade”, diz a violinista de 29 anos, que a certa altura sentiu que a sua juventude poderia ser um obstáculo na carreira. “O facto de ser mais nova, naturalmente com menos experiência do que os restantes membros do naipe, requereu de mim uma responsabilidade acrescida para conquistar a confiança dos meus colegas, que na maioria são homens; mas eles sempre me apoiaram”, testemunha Ana Madalena Ribeiro.

Já Raquel Couto vive uma situação diferente, pois dirige um coro maioritariamente constituído por meninas. “Nestas idades, os rapazes valorizam mais as actividades desportivas”, diz a maestrina, que também nunca se sentiu discriminada na Casa da Música mas não esquece que no mundo da música há um quadro mental que prejudica a mulher. “À partida, as quotas não deveriam ser necessárias, mas tem sido à custa delas que, hoje, temos mulheres chefes de partidos e noutros cargos profissionalmente elevados; parece um passo ainda necessário”, constata.

Na sua programação regular, a Casa da Música tem vindo a dar espaço às mulheres, embora elas se mantenham em franca minoria. Além da já citada Kaija Saariaho, passaram já também pelo Porto, como compositoras e artistas residentes ou em associação, a sueca Karin Rehnqvist (2008), a sul-coreana Unsuk Chin (2014) e a russa Alina Ibragimova (2016).

Ângela da Ponte foi a jovem compositora portuguesa em residência em 2011 (a escolha de uma mulher repetiu-se em 2014, com Ana Seara), no correr de um percurso profissional (é professora no Conservatório de Vila Real e colaboradora da ESMAE, no Porto) e criativo em que, diz, nunca sentiu entraves por ser mulher. “Se alguma oportunidade ou alguma coisa não aconteceu, ter-se-á devido à qualidade, ou falta dela, do meu trabalho”, admite. E compara a situação portuguesa com aquela que conheceu em Inglaterra, quando estudou em Birmingham, no ElectroAcoustic Studio Theatre: “O que senti foi que as mulheres em Inglaterra querem ter mais voz, mais peso na sua área profissional, enquanto em Portugal, não sei se por uma questão de comodismo, ou ainda pela herança do Estado Novo, a mulher é mais submissa”, mesmo se começa a verificar-se “um maior envolvimento com essa causa em todas as áreas”.

A constatação deste estado das coisas e a possibilidade de elas melhorarem está na base de State of(f) emergencies, a peça que Ângela da Ponte vai estrear com o Remix no Música no Feminino (Sala Suggia, dia 17, às 19h30). “Não é uma referência à situação da mulher, é uma reacção pessoal à actualidade, quando tudo está em estado de emergência: o clima, a economia, as relações humanas…”. “É a consciência da emergência, mas com um sentimento de esperança”, acrescenta a autora açoriana, que verá outra obra sua cantada pelo Coro Infantil a encerrar o programa (dia 29, às 18h), ao lado de peças da também portuguesa Sofia Sousa Rocha e de outros nomes da longa história da música – no feminino –, de Hildegard von Bingen a Lili Boulanger, de Katy Abbott a Andrea Ramsey.

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