Portugal registou 63 casos de mutilação genital feminina em 2018

Jaha Dukureh, natural da Gâmbia, recebe o prémio Norte-Sul nesta sexta-feira. Os números de mutilação genital feminina têm vindo a baixar e a diferença “é enorme”, “nunca se viu nada como isto em África” — mas há ainda muitos casos.

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FINBARR O'REILLY/REUTERS

A prática da mutilação genital feminina (MGF) poderia ser erradicada em cinco anos, se a causa conseguisse angariar financiamento para lançar uma campanha global, disse à Lusa Jaha Dukureh, que recebe o Prémio Norte-Sul no parlamento português nesta sexta-feira.

A embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas para o continente africano, que receberá na Assembleia da República o prémio do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa relativo a 2018, numa cerimónia onde estará presente o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, considera que o objectivo estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para 2030 para a erradicação da prática que vitimou já mais de 200 milhões de mulheres em todo o mundo poderia ser encurtado significativamente.

Portugal registou 63 casos de mutilação genital feminina em 2018, mas até meados de Agosto deste ano o número de registos ascendia já a 54 casos, de acordo com os dados do projecto Práticas Saudáveis, de prevenção e combate ao fenómeno, centrado nas estruturas de saúde nacionais.

Ainda assim, há que ter cautela na interpretação destes dados, já que estes registos não correspondem necessariamente a práticas de mutilação recentes ou feitas em Portugal. “Há uma maior capacidade do sistema de saúde de identificar, sinalizar e diagnosticar estes casos. São mulheres de todos os grupos etários, na esmagadora maioria e, como se tem vindo a registar, a identificação ou a prática foi realizada fora do país”, explicava à Lusa a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, em Agosto. A identificação destes casos é importante a nível médico – já que é uma prática que deixa sequelas físicas e psíquicas para toda a vida – e há casos de mulheres mutiladas que não sabem a que tipo de mutilação foram submetidas.

Estou realmente surpreendida que vocês tenham tantos casos de MGF em Portugal”, afirmou à Lusa, inibindo-se de avançar qualquer sugestão para a mitigação da prática. “Preciso de compreender exactamente o que se passa em Portugal e quais são as tendências para que possa oferecer qualquer tipo de conselho”, justificou.

“Se conseguíssemos arrecadar 20 milhões de dólares [18 milhões de euros] para uma campanha global sobre a MGF, acho que não teríamos que esperar até 2030 para erradicá-la. Pessoalmente, acredito que em cinco anos conseguiríamos erradicar a MGF”, afirmou Jaha Dukureh em entrevista à Lusa.

Dukureh, actualmente a viver nos Estados Unidos, é fundadora da organização não-governamental Safe Hands for Girls e a “motorista” principal de um autocarro cor-de-rosa adquirido pela organização no início de 2018 que tem percorrido as estradas da sua terra natal, a Gâmbia.

“Se pudéssemos ter um autocarro rosa em cada país em que se pratica a MGF, tenho a certeza de que mais pessoas saberiam sobre os seus efeitos nocivos e as coisas poderiam mudar” mais rapidamente, considerou. Um autocarro por país seria “suficiente”, sublinhou. “Não precisamos de muitos”.

A activista acredita que “a defesa dos direitos não deve ter um preço” e também que o dinheiro não deve ser desperdiçado.

“Temos um autocarro cor-de-rosa na Gâmbia, que tem viajado por todo o país e permitiu à organização economizar muito dinheiro. [...] O nosso autocarro rosa teve um enorme impacto no nosso trabalho nos últimos dois anos, fez uma diferença enorme em pessoas que estamos a alcançar e que não teríamos podido alcançar de outra forma”, relatou.

“Acho que nunca se viu nada como isto em África”

A chegada de Jaha Dukureh a Portugal para receber o prémio do Conselho da Europa coincidiu com a divulgação dos últimos dados do instituto de estatísticas gambiano, que apontam para uma queda de cerca de 25% do número de raparigas vítimas de MGF nos últimos cinco anos.

“A MGF é praticada no nosso país em meninas entre os zero e 14 anos. Depois dos 14 anos já não é feita. Em 2018, a percentagem de meninas vítimas que qualquer tipo de MGF foi de 50,6%. No último estudo era de mais de 74%. Isso quer dizer que baixámos a MGF em 25% no nosso país num período de menos de cinco anos. [...] Se estes números mostram o que estamos a pensar, a diferença é enorme. Acho que nunca se viu nada como isto em África”, disse à Lusa.

Um país que poderá em breve vir a conhecer o autocarro rosa da “Safe Hands for Girls” é a Guiné-Bissau. “A Guiné-Bissau fica a uma hora de carro” da comunidade de Jaha Dukureh na Gâmbia. “Sei que a MGF ultrapassa os 50% na Guiné-Bissau, infelizmente nunca fui à Guiné-Bissau. Falamos constantemente em irmos à Guiné-Bissau, mas nunca lá fui. Quando soubermos os últimos dados estatísticos do que mudou e onde na Gâmbia e a diferença [em relação aos últimos dados], levarmos o nosso autocarro rosa à Guiné-Bissau ou ao Senegal será muito fácil”, disse.

O caso de Jaha Dukureh

A vencedora do Prémio Norte-Sul de 2018, Jaha Dukureh, atribui esse reconhecimento ao facto de ter nascido numa comunidade que “pratica a mutilação genital feminina e o casamento infantil”, e de ter sobrevivido a ambas as práticas. “Dou o meu exemplo”, acrescentou a activista. “Fui submetida a MGF quando tinha uma semana de vida. Não me lembro nem ninguém me disse que tinha sido submetida a MGF com essa idade. Eu cresci na Gâmbia e mudei-me para os Estados Unidos com 15 anos para me casar, quando a minha mãe morreu. Foi na noite do meu casamento que percebi o que era a MGF e o que a circuncisão feminina verdadeiramente significava”, contou à Lusa.

“Eu tinha sido submetida a uma das formas mais severas de MGF e foi a primeira vez que tomei contacto com isso. Penso que muitas meninas que são submetidas a MGF com idades entre os dez e os 14 anos muitas vezes pouco se apercebem que passam por isso, mas no meu caso eu nem sabia”, acrescentou.

A activista cresceu numa família com quatro irmãs e três irmãos e foi uma das primeiras meninas da família a prosseguir os estudos com o apoio da família, sobretudo da mãe, que, quando Jaha frequentava o sétimo ano de escolaridade, adoeceu com cancro e a levou consigo para Londres, onde viria a falecer. Porém, a mãe de Jaha “nunca” disse nada.

“Nem uma vez. Eu acho que ela pensou que estava a fazer o que era melhor para mim. Acho que ela pensou que, se eu não fosse submetida a isso, havia a hipótese de ninguém casar comigo. Sabendo como são as nossas comunidades e como as meninas que não passam pela MGF são insultadas, ela pensou que estava a fazer a coisa certa”, justificou.

Quando a mãe de Jaha morreu, a activista regressou à Gâmbia para saber que tinha sido prometida em casamento com um homem para lá dos 40 anos a viver em Nova Iorque. A noite de núpcias terá marcado o início da sua luta contra a MGF, mas também contra o casamento infantil. Aos 17 anos, viria a mudar-se para Atlanta para se casar pela segunda vez.

Hoje, Jaha Dukureh tem três filhos e é uma das caras mais visíveis da luta contra a MGF, não apenas em África. Em 2016 foi incluída na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo da revista Time e em Fevereiro do ano passado foi nomeada para o Prémio Nobel da Paz. É embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas para África, e tem uma explicação para isso.

Notícia actualizada às 10h53 com a explicação de que os casos de mutilação identificados não são necessariamente recentes ou feitos em Portugal. 

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