A “renegada” Catarina e a Social-Democracia

O que há de novo e de substancialmente relevante no presente é o facto de Catarina Martins se ter atrevido a proclamar a opção pela social-democracia. Acho que fez bem.

Numa entrevista ao jornal Observador a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, afirmou o seguinte: “Os partidos também têm projectos para os tempos históricos que vivem. O Bloco de Esquerda apresenta um programa, às vezes as pessoas ficam um pouco chocadas, mas eu acho importante dizê-lo que é, na sua essência, um programa social-democrata.” Se as palavras ainda têm algum significado na nossa vida política, e presume-se naturalmente que tenham, esta declaração constitui um dos acontecimentos mais relevantes ocorridos nos últimos tempos no nosso país. Façamos um breve exercício de decomposição analítica das afirmações proferidas por Catarina Martins. Ela começa por dizer que o BE é portador de um projecto adaptado a uma circunstância histórica precisa anunciando, assim, um certo pragmatismo político; logo de seguida salienta o carácter chocante, mas igualmente importante, da novidade que irá transmitir; esta consiste na divulgação de que o programa do BE é, na sua essência, de teor social-democrata. Não estamos perante algo de acidental, de subsidiário, de meramente parcelar – estamos perante uma opção substancial pela social-democracia. É natural que Catarina Martins admita a perplexidade de alguns e valorize a singularidade do acto verbal praticado. Sem sombra de dúvidas estamos perante uma novidade na vida política portuguesa.

Registada a afirmação, que por si própria detém já um extraordinário significado político, convirá averiguar acerca do grau de conformidade da mesma com a realidade. Convenhamos que não é tarefa fácil, dado o carácter polissémico da noção de social-democracia. Se nos ativermos a uma compreensão restritiva da social-democracia dificilmente a poderemos ver representada em Portugal seja por quem for. Teremos, por isso, de optar por uma acepção mais lata do referido conceito em harmonia, de resto, com o que é habitualmente praticado. Nessa perspectiva parece-nos interessante a fórmula desenvolvida por Anthony Crossland, um histórico dirigente e intelectual do Partido Trabalhista britânico, que consistia no seguinte: social-democracia= liberalismo político + economia mista + Estado Providência + política económica keynesiana + promoção da igualdade. Crossland afirmava isto nos anos 50 do século passado. Para trás já tinham ficado o revisionismo de Bernstein e a reinterpretação do marxismo levada a cabo por Kautsky no interior do mais importante partido social-democrata, o alemão. Bernstein, conotado com a ala direita da social-democracia alemã, ousou romper com o dogmatismo marxista, antepondo a ética kantiana à dialectica hegueliana, e reconhecendo inegáveis méritos à democracia parlamentar e à própria economia capitalista. Kautsky, principal figura da social-democracia europeia do seu tempo, sem romper abertamente com o pensamento marxista, formulou duríssimas críticas ao bolchevismo e à ditadura do proletariado promovida pelo mesmo na União Soviética, o que originou um violentíssimo ataque contra si da parte de Lenine. Tanto este como Trotsky elaboraram documentos doutrinários e desenvolveram acções históricas concretas absolutamente antagónicas a tudo quanto, pelo menos a partir de 1914, era preconizado pela corrente social-democrata em toda a Europa.

O confronto entre comunistas e social-democratas marcou praticamente todo o século XX. Lenine na sua obra panfletária A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky deu o mote para uma longa campanha de acusações infames dirigida ao movimento social-democrata. Por seu lado, este movimento, nas suas diversas manifestações nacionais, nunca se coibiu de denunciar a identidade totalitária dos regimes comunistas. É certo que, hoje, reduzidos a escombros esses regimes e ressurgida a tentação da extrema-direita, o quadro cultural e político é significativamente diferente e apela a respostas inovadoras.

Neste novo contexto histórico caberá, então, perguntar se o Bloco de Esquerda é enquadrável no espaço da social-democracia. Não o foi claramente no seu início por opção própria, que terá tido a ver com a natureza das organizações partidárias que o fundaram e com o pensamento e os percursos políticos dos seus principais dirigentes. A verdade é que o Bloco de Esquerda se foi paulatinamente transformando e é hoje um partido político com características bem distintas daquelas que apresentava aquando da sua génese. É um partido reformista, que valoriza a democracia parlamentar, promove a luta pelos direitos humanos em todo o mundo e convive, ainda que com alguma dificuldade, com a economia de mercado. O facto de preconizar um amplo programa de nacionalizações ou a renegociação da dívida pública confere-lhe um tom de radicalismo político notório, compatível porém com um posicionamento mais à esquerda no campo da tradição social-democrata europeia. Acresce a isto que o Bloco de Esquerda sempre procurou associar-se a um conjunto de temas e causas, convencionalmente designados por pós-materiais, que têm sido igualmente reclamados por vários partidos social-democratas no espaço europeu.

Poder-se-á assim concluir, sem mais, que assiste razão a Catarina Martins quando esta apregoa como social-democrata o programa eleitoral que propõe ao país? A meu ver, a resposta só pode ser afirmativa, levando até em consideração a fórmula de Crossland acima enunciada.

O que há de novo e de substancialmente relevante no presente é o facto de Catarina Martins se ter atrevido a proclamar a opção pela social-democracia. Acho que fez bem. E eu que aqui tantas vezes no passado ataquei o Bloco de Esquerda sinto-me agora compelido a saudar tão significativo passo.

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