No Baile Brega, a língua portuguesa “não é uma coisa só”

Inserido na terceira edição do Fórum Internacional de Gaia, que arranca esta quarta-feira, há um programa que quer problematizar a língua portuguesa e a lusofonia através de um alinhamento plural e multidisciplinar.

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A performance PROV(oc)A(ção) PÚBLICA, do brasileiro Dori Nigro JOÃO PÁDUA

Performance, música, espectáculos de drag, dança, teatro, karaoke, stand-up comedy, literatura, videoarte – a partir desta quarta-feira, e até dia 21, a garagem do Auditório Municipal de Gaia acolhe o Baile Brega, um show de variedades que propõe olhar a produção artística portuguesa de uma perspectiva pluralista e interseccional, lúdica e política.

Programado pelo artista, investigador e curador Rogério Nuno Costa, o Baile Brega é um novo eixo de programação do Fórum Internacional de Gaia, “uma festa da cidadania” cuja terceira edição decorre até dia 22 com um programa dedicado ao pensamento e às artes, ancorado “no tema da colaboração em português”, explica Ana Carvalho, responsável pela direcção artística do fórum.

A língua portuguesa e a lusofonia são questões estruturantes da programação artística deste ano, e o Baile Brega quer problematizá-las: como escreveu a artista e escritora Gisela Casimiro, uma das convidadas deste baile (sexta-feira, dia 20), a propósito do trabalho de Grada Kilomba, “a língua portuguesa é uma língua muito colonial e muito patriarcal, e o nosso discurso de que é a língua mais bela, mais doce, idem”. Num programa que conta com vários criadores negros e afrodescendentes, um dos objectivos é estimular uma perspectiva crítica e politizada sobre o português, “uma língua que foi imposta” aos povos e países colonizados por Portugal, assinala Rogério Nuno Costa.

“Este programa vai revelar quais são as várias formas de comunicar através de uma língua comum, mas essa língua comum é tudo menos uma coisa só. Temos muitos dialectos, sotaques, gírias, crioulos, influências”, nota o programador, lembrando que muitos desses dialectos são ainda hoje estigmatizados e marginalizados. “O meu maior motor para o Baile Brega foi ter o maior número possível de visões e perspectivas em relação ao que é a língua e como a podemos trabalhar.” Essa dimensão reflecte-se também na multiplicidade de linguagens artísticas que se cruzam e dialogam em cada uma das oito noites do Baile Brega, questionando como “se usa a palavra” e “se fala a língua através da performance, da dança ou da spoken word”.

De modo a cumprir a linha temática desta edição do fórum, Rogério Nuno Costa convocou artistas que abordassem a questão da língua nos seus trabalhos e desafiou, nesse sentido, “quem não o estivesse a fazer”. Isso resulta em várias apresentações inéditas, como a do colectivo Silly Season; da performer e matemática Telma João Santos; da actriz de teatro e cinema Cleo Tavares, cuja performance estará relacionada com Aurora Negra, espectáculo em co-criação com Isabél Zuaa e Nádia Yracema a estrear no Teatro Nacional D. Maria II em 2020; ou a do coreógrafo Miguel Pereira, que na próxima sexta-feira, dia 13, mostra uma peça construída a partir de uma canção num dialecto moçambicano, em ligação ao país onde nasceu.

À margem

Outro dos objectivos do programa é dar espaço tanto a artistas estabelecidos como a criadores à margem dos circuitos mais institucionais. “Existe uma procura de linguagens mais marginais, no sentido de fugirem à norma ou à narrativa instituída. Há artistas que não encontramos nos grandes teatros e nos grandes festivais”, aponta Rogério Nuno Costa. “Interessou-me procurar pessoas que merecem ter mais visibilidade, não só do ponto de vista das práticas que desenvolvem mas também de como essas práticas existem e quem tem acesso a elas.”

Seguindo essa lógica da “não-normatividade”, numa programação que procura “promover um safe space inclusivo, experimental e plurilinguístico”, o Baile Brega integra manifestações e contextos artísticos que “as pessoas não costumam colocar na caixinha das artes performativas”, apesar de estes serem intrinsecamente performáticos. Exemplo disso são os shows das drag queens Sylvia Koonz, Lola Herself e Babaya Samambaia, as vencedoras das três edições do concurso Miss Drag Lisboa, que sobe pela primeira vez ao Norte no dia 18; a sessão de karaoke da performer e actriz João Abreu (“é algo que também trabalha a ideia de língua: como podemos cantar canções que não são nossas lendo as letras”), a 19; ou o espectáculo de stand-up comedy do humorista e cartunista Hugo van der Ding inspirado na língua portuguesa, para ver na noite de encerramento.

Ainda numa perspectiva transdisciplinar, e no que toca a criadores que não se querem inscrever numa só área artística, o Baile Brega deu carta branca ao colectivo lisboeta de performance/música/clubbing Rabbit Hole (dia 14) e apresenta, a 19, a performance PROV(oc)A(ção) PÚBLICA, do brasileiro Dori Nigro, que reflecte sobre a linguagem enquanto “um dos objectos principais de toda a narrativa e opressões racistas”, na sua condição “de corpo negro, brasileiro e imigrante em Portugal”, enquadra Rogério Nuno Costa.

Por esta “garagem de estar” remodelada e cenografada pelo artista visual Paulo Mendes que pretende ser o ponto de encontro dos artistas e espectadores do fórum a partir das 22h30, vão passar também músicos e DJ que têm nutrido os circuitos independentes do Porto e de Lisboa, entre eles a artista e produtora Odete, que traz o novo e excelente disco Amarração, os rappers Genes e J-K e os DJ Peter Castro, Chima Hiro ou Puto Anderson. Sem esquecer a presença, na última noite, de uma das duplas mais badaladas do momento, o Fado Bicha, que recentemente co-criou o hino-música-de-intervenção da campanha do Livre.

Fora do Baile Brega, a programação artística da terceira edição do Fórum Internacional de Gaia conta o lançamento, esta quarta-feira, da antologia de poesia lusófona Língua de Sal, “que serve de base a uma série de projectos que se estendem ao longo do fórum”, destaca Ana Carvalho. Nos próximos dias há o concerto da cantora, compositora e activista anti-racista brasileira Bia Ferreira, o espectáculo Antes, do Teatro Praga, as performances A Rapariga Mandjako (com Joãozinho da Costa) e Medo a Caminho (com Luís Mucauro), de Rui Catalão, uma conversa com a escritora Djaimilia Pereira de Almeida ou as performances de Vanessa Fernandes e AF Diaphra no âmbito do programa Língua Franca, onde se cruzam a performance, as artes visuais, a literatura e os estudos pós-coloniais.

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