Ciganos: parte da nossa história e do nosso futuro

A ciganofobia é quase certamente o preconceito racista mais arreigado na nossa sociedade em Portugal

Tenho como regra que as melhores palestras, conferências ou mesas-redondas que dou ou em que participo são aquelas em que aprendo mais do que aquilo que ensino. Por esse critério apenas, assumidamente egoísta, uma das melhores palestras que fui convidado a dar foi neste sábado na Academia de Política Cigana que decorreu na Figueira da Foz. Tanto que, depois de ter dado voltas à cabeça e à atualidade para decidir sobre que escrever nesta crónica, rapidamente cheguei à conclusão de que aquilo que vos queria mesmo falar era sobre este encontro de (e com) os ciganos portugueses. Venham daí comigo.

A oportunidade de estar perante uma plateia de umas largas dezenas de ciganos portugueses, homens e mulheres praticamente em paridade, jovens e mais velhos, de diversas formações e trajetórias, foi um privilégio que não esquecerei tão cedo e que devo ao Bruno Gonçalves Gomes, um dos organizadores da iniciativa. A minha incumbência fora falar sobre “Políticas europeias e a situação dos Roma” [“Roma”, que vem do romani “rom”, ou humano, é a expressão mais abrangente que nas instituições da UE se usa para referência a todas as populações a que historicamente em Portugal chamamos ciganas]. Como habitual em palestras que metem direito europeu e a história da integração europeia, o conteúdo é forçosamente um pouco árido de início para podermos chegar depois às coisas que serão futuramente mais práticas. Essa aridez é normalmente complementada pela tendência portuguesa para esperar pelo fim para fazer perguntas, e mesmo assim apenas após um período de prolongado e tímido silêncio. Pois aqui, não. Logo nos primeiros minutos, os braços começaram a levantar-se. “Como é que eu uso esse artigo dos tratados?”, “qual é a aplicação prática da Carta dos Direitos Fundamentais?” e por aí afora. Poucas vezes vi uma plateia com tanta sede de saber.

Quando despachámos os assuntos europeus, foi a minha vez de beneficiar. Eu tinha uma pergunta sobre o caló, ou seja, a língua dos ciganos portugueses (e ibéricos) que provém do idioma romani (uma língua indo-europeia, aparentada a todos os nossos idiomas europeus com exceção do basco, húngaro, finlandês e estónio, mas sobretudo próxima do sânscrito e de outras línguas indo-arianas) e que foi sendo influenciada pelo português ao longo dos séculos (e no resto da península pelo castelhano, catalão, etc.). De um momento para outro várias mãos se levantaram e ali tinha eu logo uma dúzia de professores. O caló está em perigo; pouca gente o fala quotidianamente e só alguns dos anciãos têm um vocabulário mais extenso. Talvez não haja mais do que alguns poucos milhares de falantes de caló. Se uma língua que morre leva consigo uma parte da humanidade, é crucial envidar esforços para que esta parte da cultura portuguesa cigana não desapareça — mas esses esforços têm de ter toda uma sensibilidade porque durante gerações e séculos o uso do caló serviu também para proteger uma comunidade que estava ameaçada e é assim que muitos anciãos ainda vêm a sua língua.

Talvez o leitor não tenha ideia disso, mas é bem possível que todos os dias use pelo menos uma palavra em caló/romani. Quando em Portugal dizemos com obsessiva frequência “gajo” e “gaja” para nos referirmos a um indivíduo, mais não estamos a fazer do que a utilizar a palavra romani “gadjó” [feminino “gadjí] que os roma utilizam para se referir a todos aqueles que não são ciganos, um pouco à maneira do hebraico “goy” que se costuma traduzir por gentios. Em caló a palavra gajó/gají passou a querer dizer simplesmente homem e mulher e foi assim que chegou ao português. Mas de certa forma a utilização íntima e informal de “gajo/gaja” no português guarda por esse passado romani a poesia de nos estarmos a chamar a todos gentios e estrangeiros, o que verdadeiramente somos quando vistos do ponto de vista individual de cada um de nós…

Daqui a conversa passou rapidamente para os contributos ciganos para a história de Portugal (outro; a própria palavra “calão”, que usamos em Portugal para nos referirmos a uma “gíria” ou “sociolecto”, vem muito provavelmente da própria língua “caló”). Onde estão os trabalhos de recolha sobre o contributo cigano na cultura portuguesa, da fadista Severa ao cenógrafo Joaquim Benite, ou no desporto (os vários Quaresmas) ou em outros vários domínios logo lembrados pelos meus interlocutores, desde os ciganos portugueses na Iª Guerra Mundial aos que participaram nas campanhas do bacalhau?

Esse conhecimento da história é importante para acabar com a ignorância que é mãe do preconceito. Ali naquela sala havia noção muito clara de como a ciganofobia é quase certamente o preconceito racista mais arreigado na nossa sociedade em Portugal, desde que há quinhentos anos os seus antepassados chegaram ao reino e em muitas cidades foram proibidos de ficar mais do que três dias. Mas conhecer mais significa enriquecer o futuro. E ali naquela sala estavam ciganas e ciganos com licenciaturas e mestrados, mediadores interculturais e ativistas, cheios de vontade de aprender e ensinar e com ganas de chegar aos lugares de representação política, o que já tarda. Por uma vez, saí dali otimista em relação ao futuro dos ciganos portugueses

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