Cuidado com o que desejas

Fazendo jus à expressão “o que arde cura”, também eu acredito que, na grande maioria das vezes, e quando devidamente aplicada, a dor pode ser a nossa melhor amiga.

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Daniel Jensen/Unsplash

Todos nós já dissemos, ou pelo menos ouvimos, ditados populares, provérbios portugueses e frases feitas. Quem nunca atirou um “quem ri por último, ri melhor” ou “o pior cego é aquele que não quer ver”? Esta sabedoria circula livremente de geração em geração e, aparentemente, tem a capacidade de se aplicar a todas as pessoas e a diversas situações. Mas como nem tudo é “lindo e maravilhoso”, em casos de desespero, por exemplo, dizerem-nos que “a esperança é a última a morrer” pode ser profundamente irritante. Ou quando começamos algo com o “pé esquerdo” e somos atacados com um “pau que nasce torto, jamais se endireita”. Estes dizeres, ao longo dos anos, tornaram-se praticamente verdades absolutas, o que nos coloca numa notória desvantagem a nível de experiência e maturidade quando ousamos questioná-los.

Fazendo jus à expressão “o que arde cura”, também eu acredito que, na grande maioria das vezes, e quando devidamente aplicada, a dor pode ser a nossa melhor amiga. Quando a aceitamos e deixamos que faça o seu trabalho, pomo-nos a jeito para crescer, aprender e, assim, evoluir. Gosto quase de imaginar a dor como uma escultora que, com a ajuda dos utensílios necessários, nos ajuda a esculpir a nossa experiência de vida e sabedoria. Enfim, é o que é, até porque “tristezas não pagam dívidas”.

Falando do meu caso, as maiores lições que a vida me trouxe até ao momento esconderam-se atrás de uma expressão aparentemente inofensiva, o habitual “cuidado com o que desejas”.

Como qualquer recém-licenciado, estava sedento de encontrar um emprego. A exigência e o critério não abundavam. Mal comparado, era uma bela embarcação de pesca com a malha muito fininha. Disparei currículos mais depressa do que uma arma semi-automática e, graças a isso, lá consegui o tão desejado trabalho. Predispus-me a fazer 120 quilómetros por dia, ter turnos rotativos e, com sorte, poder usufruir de um fim-de-semana por mês. Dois anos e alguns milhares de quilómetros depois, deixei-me vencer pelo desgaste. “Já não dá”, pensava eu, diariamente, em ​loop.​ Como “gato escaldado de água fria tem medo”, inclinei-me a procurar exactamente o oposto daquilo que tinha. Não podia ficar descansado enquanto continuasse ali. Voltei a ir ao armeiro buscar a semi-automática e toca de disparar candidaturas, mas desta vez com mais critério. Após alguma persistência, lá fui chamado para uma entrevista — a luz ao fundo do túnel começava a acender-se. Era tudo impecável: segunda a sexta-feira, das 9h às 18h, fins-de-semana livres e era tão perto de casa que conseguia ir lá almoçar. Era o paraíso laboral, tudo aquilo com que tinha sonhado antes. Aceitei a proposta sem hesitar e comecei logo a imaginar os meus níveis de dopamina e serotonina a atingirem picos históricos.

No início, foi tudo “um mar de rosas”, e sem espinhos. Podia sair de casa mais tarde, não havia trânsito, o trabalho fazia-se bem e, a partir das 18h, não tinha de pensar mais naquilo. Enquanto estes “luxos” eram novidade, eu andava todo feliz e contente. No entanto, com o passar dos meses, apercebi-me que, quando decidi mudar, não coloquei na balança todas as variáveis. Esqueci-me que a rotina, para alguém como eu, também pode causar desconforto e alguma sensação de estagnação. Os 120 quilómetros por dia e os turnos que fazia dissiparam-se no passado e com eles levaram a dor associada a estas chatices. Quando lhe dá jeito, a memória consegue mesmo encurtar-se. Os meus holofotes começaram a focar noutras necessidades. Aquilo que eu tanto ansiava, afinal não era assim tão espectacular. Todos os planos e filmes que fiz na minha cabeça não tiveram o final feliz com que sonhei. Passados alguns meses de ter começado, despedi-me.

Depois de vários anos, consigo (agora) ver a ironia da situação. Como é que algo que eu tanto quis acabou por se transformar num dos sítios onde me senti menos feliz? Eu tinha tantas certezas de que era por ali. Pensei e repensei, parecia-me mesmo o mais correcto.

Mas este é apenas um exemplo de que, no fundo, podemos achar que estamos a colocar todas as variáveis na equação e, mesmo assim, o resultado não coincidir. Não digo “certo” porque “certo” acaba por ser sempre.

Aprendi isso: o que nos garante que aquilo que desejamos é, efectivamente, aquilo que precisamos? Por vezes, os nossos objectivos podem tornar-nos míopes e impedir-nos de ver a ​bigger picture​. Além disso, as vontades são mais complexas do que imaginamos. Ter cautela e saber gerir expectativas pode ser um óptimo começo. Tirarmos os rótulos aos acontecimentos também ajuda. Nada é assim tão bom, nem nada é assim tão mau.

É fundamental aprendermos com tudo o que nos acontece. A aprendizagem torna-se especialmente possível naquilo que corre menos bem, por um simples motivo: dói. “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”, portanto o melhor é aceitar, recuperar e aprender. Eu sinto que aprendi. Como fazem questão de nos lembrar tantas vezes, “há males que vêm por bem”, mas parece que também há bens que vêm por mal. Nunca iremos saber, até acontecer. Portanto, nada como darmos o benefício da dúvida quando nem tudo é como nós queremos.

“Grão a grão”, a vida vai-nos mostrando que tem sempre razão.

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